A ilha, conto de Cícero Belmar
16 de abril de 2022
por Cícero Belmar
por Cícero Belmar
Quando pressentiu que algo muito grave silenciosamente, lhe consumia, ela pediu à filha o último presente. O último presente, disse, como imploram os condenados que desejam dizer as últimas palavras.
Por que último? Não esperava o questionamento; e sim que a filha lhe perguntasse sobre o presente. Mas esqueceu os seus motivos e já não soube responder. Diga algo que faça sentido, mamãe, último presente é dramático demais.
Baixou os olhos.
Queria viajar para rever a irmã. Precisava dizer-lhe o quanto ela fora importante, que havia negligenciado por ter passado tanto tempo sem vê-la. Queria viajar para rever a irmã, fazia tempo que não a via. Queria viajar para rever. Queria.
— Já disse que lhe darei o presente, mamãe, mas pare de repetir esta frase irritante!
Atente para o tempo, quis dizer e não soube. No dia em que ela se perdeu nos zigue-zagues de dois quartos, sala, cozinha e banheiro, a filha finalmente entendeu que os afetos têm urgência.
A viagem foi marcada, e aconteceu. Não seria duradoura, a filha conseguiu apenas uma semana de folga. Tempo suficiente para a consciência do reencontro. Está ótimo, minha filha.
As duas irmãs passavam longas horas sentadas uma ao lado da outra. As palavras não se encontravam. Não havia perguntas ou constatações. A respiração pulsava como o coração.
— Eu vim porque ando, sei lá, meio estranha. Muito esquecida. Esquecida demais.
— Liga para isso não, às vezes todo mundo é meio estranho.
— Às vezes eu me esqueço até o nome de minha filha. Esqueço onde estou.
— Liga para isso não, às vezes é bom a gente esquecer.
Os olhos azuis eram os mesmos de antes, mansos e belos. Mas às vezes boiavam, num vácuo.
A alma é que parecia ir a uma ilha e voltar.
— Quem é a senhora?
Foi chocante ouvir. A irmã pegou-lhe as mãos e sorriu com tristeza: em que ilha a alma dela foi parar naquele instante?
Na hora da viagem de volta, as duas se abraçaram. Despedir-se, ainda em vida, é o mesmo que abraçar a morte. Uma chorava, comovida. A outra, náufraga, parecia já ter seguido antes mesmo de o navio partir.
Por que último? Não esperava o questionamento; e sim que a filha lhe perguntasse sobre o presente. Mas esqueceu os seus motivos e já não soube responder. Diga algo que faça sentido, mamãe, último presente é dramático demais.
Baixou os olhos.
Queria viajar para rever a irmã. Precisava dizer-lhe o quanto ela fora importante, que havia negligenciado por ter passado tanto tempo sem vê-la. Queria viajar para rever a irmã, fazia tempo que não a via. Queria viajar para rever. Queria.
— Já disse que lhe darei o presente, mamãe, mas pare de repetir esta frase irritante!
Atente para o tempo, quis dizer e não soube. No dia em que ela se perdeu nos zigue-zagues de dois quartos, sala, cozinha e banheiro, a filha finalmente entendeu que os afetos têm urgência.
A viagem foi marcada, e aconteceu. Não seria duradoura, a filha conseguiu apenas uma semana de folga. Tempo suficiente para a consciência do reencontro. Está ótimo, minha filha.
As duas irmãs passavam longas horas sentadas uma ao lado da outra. As palavras não se encontravam. Não havia perguntas ou constatações. A respiração pulsava como o coração.
— Eu vim porque ando, sei lá, meio estranha. Muito esquecida. Esquecida demais.
— Liga para isso não, às vezes todo mundo é meio estranho.
— Às vezes eu me esqueço até o nome de minha filha. Esqueço onde estou.
— Liga para isso não, às vezes é bom a gente esquecer.
Os olhos azuis eram os mesmos de antes, mansos e belos. Mas às vezes boiavam, num vácuo.
A alma é que parecia ir a uma ilha e voltar.
— Quem é a senhora?
Foi chocante ouvir. A irmã pegou-lhe as mãos e sorriu com tristeza: em que ilha a alma dela foi parar naquele instante?
Na hora da viagem de volta, as duas se abraçaram. Despedir-se, ainda em vida, é o mesmo que abraçar a morte. Uma chorava, comovida. A outra, náufraga, parecia já ter seguido antes mesmo de o navio partir.
Cícero Belmar é escritor, dramaturgo e jornalista. Escreve para o público infantojuvenil e também contos, romances, biografias, crônicas e textos teatrais. Entre os romances que publicou estão Rossellini amou a pensão de dona Bombom e Umbilina e sua grande rival. Natural de Bodocó (PE), mora no Recife e é membro da Academia Pernambucana de Letras.
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