Poemas & Poetas indeléveis de 2021:
Adri Aleixo
19 de dezembro de 2021
seleção de José Couto
por Adri Aleixo
seleção de José Couto
por Adri Aleixo
O RECADO DO MORRO
O luar estava muito branco
Um pedacinho de mata aparecia longe
Dava para separar as flores azuis dos pau-terra
A vista era cansada
Tinha lido muita coisa nessa vida
E nessa hora atalhava
Ouvia tudo
O recado
Se chove se faz sol
O morro fala
A cerração confirma
O gado espera
O tempo é quem faz tocaia
E sorrateiro avisa
A história é a mesma, embora já seja outra
SERTÃO
Este friso
Entre
Água e rio
Morro, casa, curva
Este chão sempre de mim partindo
MULHER NA ROCA
Se o sol batesse nela
A essa hora do dia
Teríamos a imagem de um jarro
As mãos em cálice amparando
O som os fios
Olhando mais de perto, sentiríamos vivos
A casa, os móveis
As folhas de carvalho
Onde vivem a neta, os filhos
Falaríamos de coisas complicadas e outras elementares
De certo, eu acharia tudo doído
Mas ela diria: é o ciclo
ESTIAGEM
Ela traz um rio no corpo
E o rio dentro dela
Só quer ser mais fundo
RETORNO
Ontem foi a última vez
Que seus olhos viram
Isso que chamamos de vida
Ela sorria, a pele cheirando a terra
O sol se demorando nela
A voz cheia de horizontes anunciava:
— a vida te prepara pra partir
3004
Enquanto estou no ônibus
Posso extrair os fios brancos da sobrancelha
Olhar de um lado
A rua
Do outro
O Arrudas
Entre as pernas
Seu postal da Florence
O campo de lavandas
Ontem vi uma foto sua no México ensinando crianças
Outra na África empunhando bandeiras
Sua mochila
O all Star
E só
Eu nunca viajo
Não tenho dinheiro
Não tenho coragem
Aprendi que de uma aldeia é possível ver o mundo
E desde então faço associações
Amanditas em vez de nozes
Multidão em vez de mundo
Resistir ao invés de residir
Talvez o cheiro dos meus incensos valha o perfume dos campos de Valensole
Não costumo viajar
Mas hoje resolvi levar seu postal para passear entre as pernas.
MATRIOSKAS
Acredite
Se os vissem na rua correndo tranquilos
Em volta a lagoa da Pampulha
Não imaginariam que em casa foram guardando as coisas
Umas dentro das outras
Estocaram álcool, papel, comida
E todo dia estão a correr, pois sabem que quando tudo acabar
Ainda terão o fígado, o coração e o rim
Uns dos outros.
CARPA
Vê?
Eu não sei dizer
A pressa
Sei do embalo
Da pressa
Mas é devagar que escrevo
N u v e m
O PINTASSILGO
Eu, tão mineira querendo falar sobre o mar
O mar e a ideia do eterno retorno
Dia desses me perguntaram se lá em casa havia quintal
-minha mãe criava porcos
Meu pai plantava cana, eu disse
Mas esse fato também não é a garantia de uma boa história.
Há uma forma indefinida pela qual passamos a pertencer a algo
Assim como pertencemos a certas histórias só de ouvir contar.
A caçula chegou em casa e soube que o mais velho havia ganho um prêmio de redação
O título. O pintassilgo.
Ela mal conhecia os pássaros e de repente ouvia sobre voar no pintassilgo
Essa ave que canta e dança a rodear o dia
Algo como pintar o céu com suas asas e assim
Pertencer ao céu de alguém
Estar livre e voltar a casa
Ao ninho
Como agora o espevitado pássaro fizera ali
No meio da sala.
As coisas aparecem sem a perspectiva de sua fugacidade
Algumas, retornam.
O GATO DE ORIDES
Desliza na languidez do movimento
Esgueira-se sucinto
Entre susto e forma
É todo enigma
Entre orelhas e bigodes
Protagoniza a descarnada
Palavra
É todo referente
Descamba o dentro e o fora
O para sempre filosófico
O estranho céu dentro de si
Ei-lo novamente rarefeito.
MONJOLO
Um chão vermelho
De goiabas e cheiros
Me regressa
E assim
Meio rio, meio córrego
Tento dar-lhe fundo
Eu sei, pai
Foi seu braço que fez o mundo.
DANÇA
Eu penso no desenho dos
Corpos
Sobre a mesa
E você faz movimentos
De cítara
Há uma dança suspensa
Um itinerário de signos
Eu nunca quis morrer longe
De casa
– sempre quis tocar um
Instrumento e matar –
Você explica métodos, teorias
Dispensa a mesa
Redefine os passos
Conversaremos lento
Suspiramos forte
Coladas ao vidro, as pessoas
Observam o crime
Consumado.
RUB'AL-KHALI
A referência de lugar que aparece na tela do meu celular
É de uma região asiática
Inabitada
Com seu clima quente, desértico
.
Um espaço, esse conjunto indissociável de sistemas
A que tento me desapegar sem contar o tempo
A vida nivelada por cima
Sem ouvir os amantes
Respeitar vontades
Vislumbrar suas bordas
.
O aparelho ao alcance da mão
Perto do pulso
É como bússola
.
Observo a cidade demoradamente
É dos lentos
Seu entorno
Seus esquadros
A cortina de ônibus que intercepta os sons
.
Escapei há muito do seu totalitarismo racional
Posso ver pausadamente os interstícios da paisagem
E contar sem a anuência dos blocos
O olhar dos que se permitiram rasgar-se por dentro.
MÓBILE
Despir minúcias
Ouvir lonjuras
Pender o chão.
M&M’s
Os filhos já não choram
Nem pedem
Olhos de chumbo e sílica
Passaram-se noites de argila
Em que sonharam a casa moldada
O branco dos quartos
Na cozinha há um baleiro açucarado.
Eu temia esse tempo:
Das flores de plástico
Das balas de enfeite.
O luar estava muito branco
Um pedacinho de mata aparecia longe
Dava para separar as flores azuis dos pau-terra
A vista era cansada
Tinha lido muita coisa nessa vida
E nessa hora atalhava
Ouvia tudo
O recado
Se chove se faz sol
O morro fala
A cerração confirma
O gado espera
O tempo é quem faz tocaia
E sorrateiro avisa
A história é a mesma, embora já seja outra
SERTÃO
Este friso
Entre
Água e rio
Morro, casa, curva
Este chão sempre de mim partindo
MULHER NA ROCA
Se o sol batesse nela
A essa hora do dia
Teríamos a imagem de um jarro
As mãos em cálice amparando
O som os fios
Olhando mais de perto, sentiríamos vivos
A casa, os móveis
As folhas de carvalho
Onde vivem a neta, os filhos
Falaríamos de coisas complicadas e outras elementares
De certo, eu acharia tudo doído
Mas ela diria: é o ciclo
ESTIAGEM
Ela traz um rio no corpo
E o rio dentro dela
Só quer ser mais fundo
RETORNO
Ontem foi a última vez
Que seus olhos viram
Isso que chamamos de vida
Ela sorria, a pele cheirando a terra
O sol se demorando nela
A voz cheia de horizontes anunciava:
— a vida te prepara pra partir
3004
Enquanto estou no ônibus
Posso extrair os fios brancos da sobrancelha
Olhar de um lado
A rua
Do outro
O Arrudas
Entre as pernas
Seu postal da Florence
O campo de lavandas
Ontem vi uma foto sua no México ensinando crianças
Outra na África empunhando bandeiras
Sua mochila
O all Star
E só
Eu nunca viajo
Não tenho dinheiro
Não tenho coragem
Aprendi que de uma aldeia é possível ver o mundo
E desde então faço associações
Amanditas em vez de nozes
Multidão em vez de mundo
Resistir ao invés de residir
Talvez o cheiro dos meus incensos valha o perfume dos campos de Valensole
Não costumo viajar
Mas hoje resolvi levar seu postal para passear entre as pernas.
MATRIOSKAS
Acredite
Se os vissem na rua correndo tranquilos
Em volta a lagoa da Pampulha
Não imaginariam que em casa foram guardando as coisas
Umas dentro das outras
Estocaram álcool, papel, comida
E todo dia estão a correr, pois sabem que quando tudo acabar
Ainda terão o fígado, o coração e o rim
Uns dos outros.
CARPA
Vê?
Eu não sei dizer
A pressa
Sei do embalo
Da pressa
Mas é devagar que escrevo
N u v e m
O PINTASSILGO
Eu, tão mineira querendo falar sobre o mar
O mar e a ideia do eterno retorno
Dia desses me perguntaram se lá em casa havia quintal
-minha mãe criava porcos
Meu pai plantava cana, eu disse
Mas esse fato também não é a garantia de uma boa história.
Há uma forma indefinida pela qual passamos a pertencer a algo
Assim como pertencemos a certas histórias só de ouvir contar.
A caçula chegou em casa e soube que o mais velho havia ganho um prêmio de redação
O título. O pintassilgo.
Ela mal conhecia os pássaros e de repente ouvia sobre voar no pintassilgo
Essa ave que canta e dança a rodear o dia
Algo como pintar o céu com suas asas e assim
Pertencer ao céu de alguém
Estar livre e voltar a casa
Ao ninho
Como agora o espevitado pássaro fizera ali
No meio da sala.
As coisas aparecem sem a perspectiva de sua fugacidade
Algumas, retornam.
O GATO DE ORIDES
Desliza na languidez do movimento
Esgueira-se sucinto
Entre susto e forma
É todo enigma
Entre orelhas e bigodes
Protagoniza a descarnada
Palavra
É todo referente
Descamba o dentro e o fora
O para sempre filosófico
O estranho céu dentro de si
Ei-lo novamente rarefeito.
MONJOLO
Um chão vermelho
De goiabas e cheiros
Me regressa
E assim
Meio rio, meio córrego
Tento dar-lhe fundo
Eu sei, pai
Foi seu braço que fez o mundo.
DANÇA
Eu penso no desenho dos
Corpos
Sobre a mesa
E você faz movimentos
De cítara
Há uma dança suspensa
Um itinerário de signos
Eu nunca quis morrer longe
De casa
– sempre quis tocar um
Instrumento e matar –
Você explica métodos, teorias
Dispensa a mesa
Redefine os passos
Conversaremos lento
Suspiramos forte
Coladas ao vidro, as pessoas
Observam o crime
Consumado.
RUB'AL-KHALI
A referência de lugar que aparece na tela do meu celular
É de uma região asiática
Inabitada
Com seu clima quente, desértico
.
Um espaço, esse conjunto indissociável de sistemas
A que tento me desapegar sem contar o tempo
A vida nivelada por cima
Sem ouvir os amantes
Respeitar vontades
Vislumbrar suas bordas
.
O aparelho ao alcance da mão
Perto do pulso
É como bússola
.
Observo a cidade demoradamente
É dos lentos
Seu entorno
Seus esquadros
A cortina de ônibus que intercepta os sons
.
Escapei há muito do seu totalitarismo racional
Posso ver pausadamente os interstícios da paisagem
E contar sem a anuência dos blocos
O olhar dos que se permitiram rasgar-se por dentro.
MÓBILE
Despir minúcias
Ouvir lonjuras
Pender o chão.
M&M’s
Os filhos já não choram
Nem pedem
Olhos de chumbo e sílica
Passaram-se noites de argila
Em que sonharam a casa moldada
O branco dos quartos
Na cozinha há um baleiro açucarado.
Eu temia esse tempo:
Das flores de plástico
Das balas de enfeite.
Adri Aleixo publicou "Des.caminhos" (2014) e "Pés" (2016), ambos pela editora Patuá. Em 2017, publicou e distribuiu a plaquete "Impublicáveis". Em 2019 publicou "Das muitas formas de dizer o tempo", com imagens de Lori Figueiró, pela editora Ramalhete. É professora de Linguagens e mestranda em Literatura Brasileira pelo CEFET-MG. Mais poemas de Adri também estão publicados no Jornal Rascunho, Suplemento Literário de Minas Gerais, Mallarmargens, Literatura Br, revista Gueto, Revista Caliban, entre outros.
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José Couto (Porto Alegre/RS). Professor e poeta brasileiro. É o autor de “A impermanência da escrita” (2010), “O soneto de Pandora” (2017) e “O unicórnio do sul e outras lendas poéticas” com ilustrações de Luiza Maciel Nogueira (2018). E dos inéditos “quase quasares” poesia,”Sete Cânticos Negros”, poesia, arte plástica e música, TOTEM (poesias a quatro mãos) com arte de Artur Madruga.
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