Poemas & Poetas indeléveis de 2021:
Carla Andrade
21 de dezembro de 2021
seleção de José Couto
por Carla Andrade
seleção de José Couto
por Carla Andrade
BESTACIDADE SOTERRADA
O espelho da barraca de praia
expõe a celulite e todas as praias que já fui.
Os cartões postais que não comprei.
O barulho do mar gravado na areia do espelho.
A menina que fazia caretas no espelho
hoje vê mais lixo e mais celulite.
Paris, Texas e seus espelhos.
Quem está do outro lado do espelho?
Quem julga o lixo que entulhou?
A culpa e a falta de álibi.
O cúmplice morto sem dividir
os anos do sopro do dendezeiro
a assobiar: há tanta vida.
Sua voz trazida por aquela concha
não coletada: “sim, não foi sua intenção”.
Não há crime, apenas muitos Martinis.
Praia da Xepa e os carrinhos de rolimã
atolados num banco,
Hoje
as crianças crescidas, torsos
em seus quadriciclos sem ver os rolimãs.
Ainda somos assim,
sem direção e separados
no vazio: Paris, Texas.
Precisávamos de nossos rolimãs às vezes,
eu o conduzia,
deixava ser conduzida.
Você falava que ia me ensinar salsa
e que meus cabelos já sabiam dançar.
Na mesa o pó de café queimado espantava
os mosquitos e sibilava nossas risadas.
Apagávamos o farol do bugue e acendíamos
estrela por estrela.
Acreditava na posição delas
na sua galáxia montada para mim.
Os moinhos brancos com suas foices hasteadas
no meio das dunas confirmavam.
Ainda preciso do rolimã
de reinventar a roda
enquanto choro sem lanterninha
a nos ver no cinema.
Sozinha escuto
o barulho da minha pipoca
e tento mastigar sem incomodar
ninguém.
A tampa do entupido
Sabe quando você só quer passar perfume
para achar que tem que exalar perfume
mesmo que o cheiro cru seja bom?
Acredito que as pessoas admiram perfumes.
Eles escondem cheiros.
Eu admiro os heróis encardidos
em roupas carcomidas
os cães farejadores de carne no céu
(pelo menos ela – ainda não comestível- está no céu).
As promessas do céu são defumadas.
Eu travaria a batalha desnecessária:
provar que carne triturada
é ração de perfume dos que não têm faro.
Mas é só ração para mais um banzo amante
misturado com coisas testadas
ensacadas e classificadas.
Ensinam até a cheirar, os sonhadores:
o cheiro das utopias no quadro de giz
é apagador alérgico a cheiros de apagar.
Farejo.
Já sei disso
antes das pessoas.
O cheiro não serve só para ser cheirado.
As pessoas acharam que escrever
tinha cheiro de tinta de penas e
pranchetas roucas de traços grossos.
Penas não soltam tinta
as mãos suam é com o cheiro de ar.
É placenta pronta para gerar.
Gosto do meu sexo.
Ele é o cheiro que eu conheço.
É o cheiro da flor
que não preciso lembrar o nome
essa flor zonza
voando na luz do abajur
sem cheiro.
As pétalas caíram sem cheiro
do lado da cama troncha de velas aromáticas.
O barulho parecia giz gastado.
Perderia o olfato para você dizer:
Seu lençol é branco como nosso futuro
asséptico
clínico
cego como uma realidade madura
de lençóis das lavanderias express.
TUMOR DE PALAVRAS
Ando doente de palavras,
a boca seca e as sílabas
agarradas
em forma de escudo
de mim mesma.
A voz viaja pelo corpo
em um conversível
e o Mistral na estrada
curvilínea de neurônios
lança lenços
de exclamações
para plátanos e oliveiras
invisíveis
de uma alma sitiada.
E há tantas exclamações!
Todas encravadas na pele
dos pensamentos.
Onde estão as pinças e os dedos libertadores
para esses pelos tão profundos.
Há um medo do olho surdo
Do homem no meu olho mudo.
Sem vazão para o mundo,
o tumor de palavras se alimenta
da vida dos sonhos,
das contrações da coragem,
se alastra nos capilares das
minhas certezas.
O silêncio me pega pelos braços,
E dentro de sua rede de gatos cegos,
Notas do nada me emparedam.
Não consigo dormir,
O silêncio é o maior barulho,
Ruído polido que jazz em mim.
MORTE
é essa navalha da sorte
(sem espada de São Jorge)
o mais incicatrizável corte
em quem não morre
é a culpa do mais forte
é o lorde de sangue porte
é a tripa que o vácuo torce
e nunca se contorce por si só
BARRICADA
Do amor entulhei cada centímetro do fogo
cataloguei os arrepios bestiais
e a saliva escorre em vultos.
Mas agora as portas estão fechadas.
Com meu velotrol limpo o invisível entre os tacos
e os raios do sol asteca querem ser honrados
(esse sol também tão solitário).
Com medo, me lembro do poeta:
“Da vida não se sai pela porta:
só pela janela”.
E ela está escancarada.
OS GALOS CONTINUAM TECENDO A MANHÃ
a criança pinta os pés
da galinha de esmalte
miúdos na bacia
de alumínio da mãe
o pai fala para o filho
que vai quebrar seu pescoço
se ele entrar no mar de novo
a criança quebra o pescoço da Barbie
a mãe fala que
não vai comprar outra
a mãe e a filha com as unhas pintadas
Os poetas não deixam em paz:
o mar
a galinha
as crianças
os pais
hoje, parece que os
galos cantaram menos.
DEPOIS DA VACINA
cortar as unhas afiadas
para escalar o poço da sarjeta
reconstituir todas as cabeças
oferecidas de bandeja
grudar os umbigos
no resto de placenta do planeta
destruir todos os espantalhos
esses que fingem ser humanos
não deixar atalho algum
de como voltar a este ano
carregar os ossos deslocados
de todos os antepassados
colar as partes em laços
nadar com os sargaços
fazer deles nossos braços
veias e passos
Aí, sim, encostar
as palmas das mãos
no rosto de Deus
e voltar como um raio
apenas um raio
mas não sozinha
viva pela primeira vez.
EMPATIA MÓRBIDA
tenho a cabeça de alfinete
de uma abelha num repente
ao tentar cruzar
a porta translúcida
no poente de vidro
no chão
se acaba
tenho a cabeça espatifada
de um homem numa caraça
ao tentar puxar o ar puro
em caça à procura
com medo desse ar tão largo
e que na cama se acaba
somos parecidos
queremos trocar
no mais abissal
submarinos
venenos
ferrões
no pranayama
das abelhas
morremos e nascemos
quatro relógios por dia
na arquitetura das abelhas
morremos e nascemos
quatro relógios por dia
e andam varrendo todos os mortos
sem olharem para suas asas
BESTA
Quando um homem bate em uma mulher
o corpo bicho dela senta
no canto do labirinto
do cérebro e se contorce
com o manto
de dez a quinze minotauros
Quando um homem bate em uma mulher
o olho dela vai pro canto
e tem a cor de azeitona
já mordida e com caroço
Quando um homem bate em uma mulher
todos os marimbondos do tórax
saem pela sua boca
mas ninguém vê
Quando um homem bate em uma mulher
o corpo dela depena
e seu sangue ferve
numa bacia de prata
(os pedaços são dados aos cães
como se eles entendessem
o barulho minguado
da lua de suas tripas)
Quando um homem bate em uma mulher
ele sempre tem forma
de pino ou garrafa
e ela desfigurada
Quando o homem bate em uma mulher
ela sabe que jamais poderia ser um homem
OSTRA ABERTA
seus lábios gomos
mais de uma pérola
beijo de fome
língua de falo
fala sem auréola
SEMIÓTICA E SEMI-DEUSES
eu queria subir em um tsuru
olhar bem antes para o seu
degradê de cores e rir da sua
longevidade jovem de mil anos
é um pesar ser tão eterno
(triste ou feliz) sem descanso
sem desmame do tempo
eu queria ir do Japão para a China
no seu grou amarelo poeta Calixto
destruir e reconstruir a Torre
sete vezes numa bebedeira cabalística
e trocar as cores das cerejeiras
pelas cores dos pessegueiros
mas não posso: eles também
têm vida longa e próspera
Eu queria ter o corpo do Sísifo
as minhas pedras têm o mesmo peso
e rolam do topo todos os dias
E, se não for pedir muito,
ter menos ouvido para escutar
as senhoras disputando
quem vai mais a igreja para
conquistar a eternidade
(os suicídios estão mais sinceros
que as revoltas)
mesmo assim eu gostaria
de sacolejar bandeiras
todas as cores e já, agora
a maioria de cor sangue
mas acho que as pessoas
deveriam enxergar mais
como os cachorros
espectros azuis ou laranjas
elas estão bem bipolares
não merecem as cores
Estou cansada: quero
trançar meu cabelo
asilar esse momento
e despertar amanhã
menos sóbria, sombria
sombrinha de árvores
no espelho dos meus
olhos e no colo das
benzedeiras
O espelho da barraca de praia
expõe a celulite e todas as praias que já fui.
Os cartões postais que não comprei.
O barulho do mar gravado na areia do espelho.
A menina que fazia caretas no espelho
hoje vê mais lixo e mais celulite.
Paris, Texas e seus espelhos.
Quem está do outro lado do espelho?
Quem julga o lixo que entulhou?
A culpa e a falta de álibi.
O cúmplice morto sem dividir
os anos do sopro do dendezeiro
a assobiar: há tanta vida.
Sua voz trazida por aquela concha
não coletada: “sim, não foi sua intenção”.
Não há crime, apenas muitos Martinis.
Praia da Xepa e os carrinhos de rolimã
atolados num banco,
Hoje
as crianças crescidas, torsos
em seus quadriciclos sem ver os rolimãs.
Ainda somos assim,
sem direção e separados
no vazio: Paris, Texas.
Precisávamos de nossos rolimãs às vezes,
eu o conduzia,
deixava ser conduzida.
Você falava que ia me ensinar salsa
e que meus cabelos já sabiam dançar.
Na mesa o pó de café queimado espantava
os mosquitos e sibilava nossas risadas.
Apagávamos o farol do bugue e acendíamos
estrela por estrela.
Acreditava na posição delas
na sua galáxia montada para mim.
Os moinhos brancos com suas foices hasteadas
no meio das dunas confirmavam.
Ainda preciso do rolimã
de reinventar a roda
enquanto choro sem lanterninha
a nos ver no cinema.
Sozinha escuto
o barulho da minha pipoca
e tento mastigar sem incomodar
ninguém.
A tampa do entupido
Sabe quando você só quer passar perfume
para achar que tem que exalar perfume
mesmo que o cheiro cru seja bom?
Acredito que as pessoas admiram perfumes.
Eles escondem cheiros.
Eu admiro os heróis encardidos
em roupas carcomidas
os cães farejadores de carne no céu
(pelo menos ela – ainda não comestível- está no céu).
As promessas do céu são defumadas.
Eu travaria a batalha desnecessária:
provar que carne triturada
é ração de perfume dos que não têm faro.
Mas é só ração para mais um banzo amante
misturado com coisas testadas
ensacadas e classificadas.
Ensinam até a cheirar, os sonhadores:
o cheiro das utopias no quadro de giz
é apagador alérgico a cheiros de apagar.
Farejo.
Já sei disso
antes das pessoas.
O cheiro não serve só para ser cheirado.
As pessoas acharam que escrever
tinha cheiro de tinta de penas e
pranchetas roucas de traços grossos.
Penas não soltam tinta
as mãos suam é com o cheiro de ar.
É placenta pronta para gerar.
Gosto do meu sexo.
Ele é o cheiro que eu conheço.
É o cheiro da flor
que não preciso lembrar o nome
essa flor zonza
voando na luz do abajur
sem cheiro.
As pétalas caíram sem cheiro
do lado da cama troncha de velas aromáticas.
O barulho parecia giz gastado.
Perderia o olfato para você dizer:
Seu lençol é branco como nosso futuro
asséptico
clínico
cego como uma realidade madura
de lençóis das lavanderias express.
TUMOR DE PALAVRAS
Ando doente de palavras,
a boca seca e as sílabas
agarradas
em forma de escudo
de mim mesma.
A voz viaja pelo corpo
em um conversível
e o Mistral na estrada
curvilínea de neurônios
lança lenços
de exclamações
para plátanos e oliveiras
invisíveis
de uma alma sitiada.
E há tantas exclamações!
Todas encravadas na pele
dos pensamentos.
Onde estão as pinças e os dedos libertadores
para esses pelos tão profundos.
Há um medo do olho surdo
Do homem no meu olho mudo.
Sem vazão para o mundo,
o tumor de palavras se alimenta
da vida dos sonhos,
das contrações da coragem,
se alastra nos capilares das
minhas certezas.
O silêncio me pega pelos braços,
E dentro de sua rede de gatos cegos,
Notas do nada me emparedam.
Não consigo dormir,
O silêncio é o maior barulho,
Ruído polido que jazz em mim.
MORTE
é essa navalha da sorte
(sem espada de São Jorge)
o mais incicatrizável corte
em quem não morre
é a culpa do mais forte
é o lorde de sangue porte
é a tripa que o vácuo torce
e nunca se contorce por si só
BARRICADA
Do amor entulhei cada centímetro do fogo
cataloguei os arrepios bestiais
e a saliva escorre em vultos.
Mas agora as portas estão fechadas.
Com meu velotrol limpo o invisível entre os tacos
e os raios do sol asteca querem ser honrados
(esse sol também tão solitário).
Com medo, me lembro do poeta:
“Da vida não se sai pela porta:
só pela janela”.
E ela está escancarada.
OS GALOS CONTINUAM TECENDO A MANHÃ
a criança pinta os pés
da galinha de esmalte
miúdos na bacia
de alumínio da mãe
o pai fala para o filho
que vai quebrar seu pescoço
se ele entrar no mar de novo
a criança quebra o pescoço da Barbie
a mãe fala que
não vai comprar outra
a mãe e a filha com as unhas pintadas
Os poetas não deixam em paz:
o mar
a galinha
as crianças
os pais
hoje, parece que os
galos cantaram menos.
DEPOIS DA VACINA
cortar as unhas afiadas
para escalar o poço da sarjeta
reconstituir todas as cabeças
oferecidas de bandeja
grudar os umbigos
no resto de placenta do planeta
destruir todos os espantalhos
esses que fingem ser humanos
não deixar atalho algum
de como voltar a este ano
carregar os ossos deslocados
de todos os antepassados
colar as partes em laços
nadar com os sargaços
fazer deles nossos braços
veias e passos
Aí, sim, encostar
as palmas das mãos
no rosto de Deus
e voltar como um raio
apenas um raio
mas não sozinha
viva pela primeira vez.
EMPATIA MÓRBIDA
tenho a cabeça de alfinete
de uma abelha num repente
ao tentar cruzar
a porta translúcida
no poente de vidro
no chão
se acaba
tenho a cabeça espatifada
de um homem numa caraça
ao tentar puxar o ar puro
em caça à procura
com medo desse ar tão largo
e que na cama se acaba
somos parecidos
queremos trocar
no mais abissal
submarinos
venenos
ferrões
no pranayama
das abelhas
morremos e nascemos
quatro relógios por dia
na arquitetura das abelhas
morremos e nascemos
quatro relógios por dia
e andam varrendo todos os mortos
sem olharem para suas asas
BESTA
Quando um homem bate em uma mulher
o corpo bicho dela senta
no canto do labirinto
do cérebro e se contorce
com o manto
de dez a quinze minotauros
Quando um homem bate em uma mulher
o olho dela vai pro canto
e tem a cor de azeitona
já mordida e com caroço
Quando um homem bate em uma mulher
todos os marimbondos do tórax
saem pela sua boca
mas ninguém vê
Quando um homem bate em uma mulher
o corpo dela depena
e seu sangue ferve
numa bacia de prata
(os pedaços são dados aos cães
como se eles entendessem
o barulho minguado
da lua de suas tripas)
Quando um homem bate em uma mulher
ele sempre tem forma
de pino ou garrafa
e ela desfigurada
Quando o homem bate em uma mulher
ela sabe que jamais poderia ser um homem
OSTRA ABERTA
seus lábios gomos
mais de uma pérola
beijo de fome
língua de falo
fala sem auréola
SEMIÓTICA E SEMI-DEUSES
eu queria subir em um tsuru
olhar bem antes para o seu
degradê de cores e rir da sua
longevidade jovem de mil anos
é um pesar ser tão eterno
(triste ou feliz) sem descanso
sem desmame do tempo
eu queria ir do Japão para a China
no seu grou amarelo poeta Calixto
destruir e reconstruir a Torre
sete vezes numa bebedeira cabalística
e trocar as cores das cerejeiras
pelas cores dos pessegueiros
mas não posso: eles também
têm vida longa e próspera
Eu queria ter o corpo do Sísifo
as minhas pedras têm o mesmo peso
e rolam do topo todos os dias
E, se não for pedir muito,
ter menos ouvido para escutar
as senhoras disputando
quem vai mais a igreja para
conquistar a eternidade
(os suicídios estão mais sinceros
que as revoltas)
mesmo assim eu gostaria
de sacolejar bandeiras
todas as cores e já, agora
a maioria de cor sangue
mas acho que as pessoas
deveriam enxergar mais
como os cachorros
espectros azuis ou laranjas
elas estão bem bipolares
não merecem as cores
Estou cansada: quero
trançar meu cabelo
asilar esse momento
e despertar amanhã
menos sóbria, sombria
sombrinha de árvores
no espelho dos meus
olhos e no colo das
benzedeiras
Carla Andrade é mineira e brasiliense, mas gostaria de ser do fundo do mar. Livros de poesia publicados: "Caligrafia da Nuvens" (Patuá), "Voltagem" (7Letras), "Artesanato de Perguntas" (7Letras), "Conjugação de Pingos de Chuva" (LGE) e "Ando caindo cada vez mais leve" (Penalux, 2021). Além de poeta, é jornalista e servidora pública.
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José Couto (Porto Alegre/RS). Professor e poeta brasileiro. É o autor de “A impermanência da escrita” (2010), “O soneto de Pandora” (2017) e “O unicórnio do sul e outras lendas poéticas” com ilustrações de Luiza Maciel Nogueira (2018). E dos inéditos “quase quasares” poesia,”Sete Cânticos Negros”, poesia, arte plástica e música, TOTEM (poesias a quatro mãos) com arte de Artur Madruga.
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