Duas crônicas do livro Deslocamentos,
de Carlos Nogueira
17 de março de 2022
por Carlos Nogueira
por Carlos Nogueira
ASTRONAUTA
Sabe aqueles rios cujas superfícies são calmas, mas que embaixo escondem redemoinhos revoltos? Então, é assim que me sinto em determinados dias. A bagunça, no caso, são os pensamentos. Mas o rosto consegue disfarçar bem. É que eu sou uma espécie de astronauta do dia a dia: aperfeiçoei por décadas a viagem até o mundo da lua, de tal modo que, ao me olhar, nem todos conseguem definir em que ponto da galáxia estou. Afinal, são trinta e poucos anos de experiência no ramo.
Um “colega de profissão”, o astronauta Neil Armstrong, disse que o seu primeiro passo na lua foi pequeno para um homem, mas gigante para a humanidade. Já dos meus pensamentos lunáticos não posso dizer o mesmo. Na verdade, com eles acontece o contrário: são inúteis para a humanidade, mas importantes para este homem aqui.
Sou assim desde que me entendo por gente. Quando criança, ficava intrigado se o caminhão pipa tinha esse nome porque era capaz de voar. Segundos depois, lá estava eu: imaginando o veículo rasgando as estradas do céu. Todo colorido, que nem uma pipa.
Outro mistério que me pegou de jeito, fazendo com que eu ficasse dias pensativo, foi o que envolvia as placas de garagem. Sempre que eu via uma, pensava: de que serve indicar um abrigo para carros, se embaixo da placa diz “proibido estacionar”? Paradoxo complicado para a minha ainda limitada compreensão infantil.
Mas todo astronauta enfrenta turbulências. Se, na infância, é fofo morar no mundo da lua, parece que na vida adulta impera outra lógica. Nestas bandas dos trinta e poucos, divagar demais significa desleixo.
Ainda assim, eu me divirto com o que acontece. Como no dia em que fui trabalhar de carro e, absorto em pensamentos, retornei pra casa de ônibus. Percebi a tolice só quando cheguei no condomínio e encarei a minha garagem, vazia.
Voltei para o ponto e esperei o próximo ônibus, dessa vez com sentido ao meu trabalho. Mas, no lugar de me irritar, dei risada: afinal, para alguém que vai e volta do mundo da lua todos os dias, qual o problema em percorrer só mais alguns quilômetros?
DESLOCAMENTOS
Quando me perguntam de onde sou, sempre paro pra pensar. Se a pergunta parte de um formulário, daqueles burocráticos, é simples: querem a resposta burocrática também, a que consta no documento — Aracaju. Foi ali que vim ao mundo, no ano de 1988. Está tudo anotado. Tenho certeza: sou sergipano.
Mas a trama vai se complicando conforme o grau de intimidade. Para as pessoas com mais proximidade, arrisco respostas mais complexas. É que as primeiras memórias que tenho da vida são em Luanda, na Angola, ao lado da mãe. E lembranças são um tipo de documento também, que a gente plastifica dentro da cabeça. Logo, não há dúvida: sou angolano. Lá foi onde nasceu o meu pensamento.
Em seguida, voltei ao Brasil: fui pra Goiânia. Ali conheci o pequi, meu fruto favorito. Também foi onde conquistei o “r” de meu sotaque, emblema que causa reconhecimento imediato quando encontro alguém de lá. Daí podemos ficar horas falando sobre coisas que só fazem sentido para nós: o perigo de morder pequi; o periquito que tá roendo o coco da guariroba; os rolês de skate no Niemeyer; o samba no Glória; o rock no Martim... Conhecer esses trem tudo é o que me faz goiano.
Floripa — vou chamar pelo apelido que é pra ostentar intimidade — foi a última estação. Até tentei aprender a surfar, o que não deu muito certo. Na primeira tentativa, montei as quilhas da prancha ao contrário e fiquei horas remando sem sair do lugar — logo eu, que andei tanto pra chegar até aqui.
Mas também peguei outras ondas. Numa delas, descobri o que mais gosto de fazer, que é escrever. E descobertas assim enchem a nossa vida de... vida. São um tipo de nascer. Tanto que até tenho marca de nascença: a primeira tatuagem, feita logo quando cheguei na cidade. Portanto, sou catarinense também.
Como se não bastasse, já, tantos nascimentos, por estes dias dei entrada na papelada para a cidadania portuguesa, vínculo que descobri há pouco tempo. Mais uma gravidez em curso.
É por isso que quando me perguntam de onde sou, a vontade mesmo é responder com outra pergunta: “Sobre qual de mim quer saber?”.
Sabe aqueles rios cujas superfícies são calmas, mas que embaixo escondem redemoinhos revoltos? Então, é assim que me sinto em determinados dias. A bagunça, no caso, são os pensamentos. Mas o rosto consegue disfarçar bem. É que eu sou uma espécie de astronauta do dia a dia: aperfeiçoei por décadas a viagem até o mundo da lua, de tal modo que, ao me olhar, nem todos conseguem definir em que ponto da galáxia estou. Afinal, são trinta e poucos anos de experiência no ramo.
Um “colega de profissão”, o astronauta Neil Armstrong, disse que o seu primeiro passo na lua foi pequeno para um homem, mas gigante para a humanidade. Já dos meus pensamentos lunáticos não posso dizer o mesmo. Na verdade, com eles acontece o contrário: são inúteis para a humanidade, mas importantes para este homem aqui.
Sou assim desde que me entendo por gente. Quando criança, ficava intrigado se o caminhão pipa tinha esse nome porque era capaz de voar. Segundos depois, lá estava eu: imaginando o veículo rasgando as estradas do céu. Todo colorido, que nem uma pipa.
Outro mistério que me pegou de jeito, fazendo com que eu ficasse dias pensativo, foi o que envolvia as placas de garagem. Sempre que eu via uma, pensava: de que serve indicar um abrigo para carros, se embaixo da placa diz “proibido estacionar”? Paradoxo complicado para a minha ainda limitada compreensão infantil.
Mas todo astronauta enfrenta turbulências. Se, na infância, é fofo morar no mundo da lua, parece que na vida adulta impera outra lógica. Nestas bandas dos trinta e poucos, divagar demais significa desleixo.
Ainda assim, eu me divirto com o que acontece. Como no dia em que fui trabalhar de carro e, absorto em pensamentos, retornei pra casa de ônibus. Percebi a tolice só quando cheguei no condomínio e encarei a minha garagem, vazia.
Voltei para o ponto e esperei o próximo ônibus, dessa vez com sentido ao meu trabalho. Mas, no lugar de me irritar, dei risada: afinal, para alguém que vai e volta do mundo da lua todos os dias, qual o problema em percorrer só mais alguns quilômetros?
DESLOCAMENTOS
Quando me perguntam de onde sou, sempre paro pra pensar. Se a pergunta parte de um formulário, daqueles burocráticos, é simples: querem a resposta burocrática também, a que consta no documento — Aracaju. Foi ali que vim ao mundo, no ano de 1988. Está tudo anotado. Tenho certeza: sou sergipano.
Mas a trama vai se complicando conforme o grau de intimidade. Para as pessoas com mais proximidade, arrisco respostas mais complexas. É que as primeiras memórias que tenho da vida são em Luanda, na Angola, ao lado da mãe. E lembranças são um tipo de documento também, que a gente plastifica dentro da cabeça. Logo, não há dúvida: sou angolano. Lá foi onde nasceu o meu pensamento.
Em seguida, voltei ao Brasil: fui pra Goiânia. Ali conheci o pequi, meu fruto favorito. Também foi onde conquistei o “r” de meu sotaque, emblema que causa reconhecimento imediato quando encontro alguém de lá. Daí podemos ficar horas falando sobre coisas que só fazem sentido para nós: o perigo de morder pequi; o periquito que tá roendo o coco da guariroba; os rolês de skate no Niemeyer; o samba no Glória; o rock no Martim... Conhecer esses trem tudo é o que me faz goiano.
Floripa — vou chamar pelo apelido que é pra ostentar intimidade — foi a última estação. Até tentei aprender a surfar, o que não deu muito certo. Na primeira tentativa, montei as quilhas da prancha ao contrário e fiquei horas remando sem sair do lugar — logo eu, que andei tanto pra chegar até aqui.
Mas também peguei outras ondas. Numa delas, descobri o que mais gosto de fazer, que é escrever. E descobertas assim enchem a nossa vida de... vida. São um tipo de nascer. Tanto que até tenho marca de nascença: a primeira tatuagem, feita logo quando cheguei na cidade. Portanto, sou catarinense também.
Como se não bastasse, já, tantos nascimentos, por estes dias dei entrada na papelada para a cidadania portuguesa, vínculo que descobri há pouco tempo. Mais uma gravidez em curso.
É por isso que quando me perguntam de onde sou, a vontade mesmo é responder com outra pergunta: “Sobre qual de mim quer saber?”.
Carlos Nogueira nasceu em Sergipe, em 1988. Mudou-se aos dois anos de idade para Luanda, na Angola, onde viveu até os cinco. De volta ao Brasil, morou em Goiás, e desde 2015 reside em Santa Catarina. Ele é graduado em Comunicação Social pela UFG e especialista em Literatura, Cultura e História Afro-Brasileira e Indígena pela UniCesumar. Estreou na literatura em 2018, com o livro de poemas Amar sem advérbios (Tripous).
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