Poemas & Poetas indeléveis de 2021:
Carvalho Junior
20 de dezembro de 2021
seleção de José Couto
por Carvalho Junior
seleção de José Couto
por Carvalho Junior
ALÉM DO INTAMANHÁVEL
I.
O intamanhável |nada além me cabe|
Goza na solidão do meu desejo.
Morro na tapera, que no peito abre,
Junto à borboleta no azulejo.
O insabinhável |nada além me sabe|
Chora um pensamento no meu cortejo,
Sigo o caminho dos céus como uma ave,
O pássaro e a alma abertos ao meio.
O inumbigável |nada além me guarda|
Quebra toda a cabaça do universo
E a reinventa na mão da costureira.
O impoemável |nada além me sabre|
Reclama algum lugar dentro do inverso,
Recostado ao quente do teu seio.
II.
O inespelhável |nada além me fita|
Contempla minha cicatriz antiga,
Cerzida no espanto de sons da lira,
Lateja-me esta chaga da utopia.
O ilamparinável |nada além me arde|
Guia-me pelo atalho de alvas pedras,
Mergulho no olho d’água da saudade
Quando a semente ancestral me desperta.
O ilagartável |nada além me foge|
Escorre a areia sagrada da pele
Na rabanada azul do seu chicote.
O iliriável |nada além me fere|
Um perfume desmaiado me cega
Dentro da contínua malícia aberta.
III.
O ilabiável |nada além me fala|
Passa-me liso pelos gorgomilos.
Como a libélula que os olhos lava,
Nutre-me a alma com cânticos de grilos.
O inorelhável |nada além me assunta|
– ninguém tão bem me protege o segredo –
Labirinto do verbo que me funda,
Safa-me dos cães os trêmulos dedos.
O inestrelável |nada além me brilha|
Abriga um incomum lápis de luz
Que, agora, me salva do suicídio.
O inenodoável |nada além me suja|
Oculta a tatuagem de caju
Debaixo das chagas que em mim pulsam.
IV.
O inacangalhável |nada além me aba|
Completa-me o corpo tão mutilado,
Renova os tecidos da minha casca,
Toca-me os pés pelo chão magoado.
O inabalaiável |nada além me vaza|
Derrama-me as vestes de um tempo ácido,
O estilhaço de um perdido sorriso,
Dos meus azulões cada uma das asas.
O inembirável |nada além me livra|
Laça-me ao íntimo das cacimbas,
Enreda-me aos seios de Zulmira.
O inensapucaiável |nada além me lê|
Tece-me na sombra da ladeira infinita,
Canta o segredo um índio: fulô, quatetê!
A OUTRA MARGEM
Sou dessas sementes desacreditadas
Que o vento rouba das cercas da morte
E lança na outra margem do rio
Pelo milagre do bico do pássaro.
O NARIZ DA MINHA MÃE SANGRA...
Enquanto o político derrocado
Posa de moralista na estação de rádio,
O nariz da minha mãe sangra.
Enquanto jogam peteca a cidade e o caos
Nas fendas da ladeira vermelha do sono,
O nariz da minha mãe sangra.
Enquanto o trânsito segue áspero
E a delicadeza murcha
Nas hortas e palavras (dos homens?),
O nariz da minha mãe sangra.
Enquanto as filas não diminuem
No número de desrespeito
E o farmacêutico vende pílulas antiamor,
O nariz da minha mãe sangra.
Como se falasse com Deus,
Toda vez que me toma nos braços
E me embala com o curioso cântico
— tingadonga-donga-donga/
Tingandanga-danga-danga --
O nariz da minha mãe
Morre o sangue e vive o sonho.
CLARÃO
A fome – ave de rapina –
Fita o que nos desalimenta,
Cada farelo que nos consome:
Os ásperos grãos
De pão,
De guerras,
De prêmios,
De dinheiro,
De poder...
Caberia tudo
Num só clarão de espanto ou
Num bater de asas sovinas?
A fome, de modo inclemente,
Mata com pílulas de culpa,
De exílios e silêncios cortantes!
Um sonho de capa de jornal:
Em fase de inapetência e autoflagelo,
A fome suicida-se,
Com uma garfada,
No fundo da vasilha
Em que jantava vazios.
ZUNIDO
Na carcaça da noite me desespero,
Ardo em febre, ansiedade e medo.
De pés virados no leito, ao relento,
Sou engolido pela angústia do tempo.
Penso na velha Iaiá, rezadeira morta,
E um sussurro atravessa a porta
Do meu esconderijo de sombras.
Como se falasse por um cazumbi,
Uma voz, caindo-me sobre os ombros,
Expele a cólera de um bicho: e daí?
Reviro-me nas camadas do sono,
Meus olhos se dilatam em espanto.
Choro, como em esquecidos outonos,
Uma dor pronunciada em esperanto.
A agonia se instala nos cômodos da casa
E desmaio no poço de um mito raso.
Que morto é esse que me abraça,
Quando se revela um absurdo zunir?
Uma mosca sem mãe cospe no vaso
O ruído sujo, bizarro — e daí?
A desdita da noite se estende,
Aves de mau agouro desatam o canto.
Desalumiado, um silêncio geme
E a lágrima desaba em contracanto.
Como se o sonho morresse de pranto
Por uma cruel adaga que nos abre aqui:
O inseto do nojo zune na fresta — e daí?
LÂMINA E LIAME
A casca deste chão
É o umbigo da minha voz.
Do trançado das folhas de palmeira
A substância da rosa de Celso Antônio:
Os meus 24 centímetros de porrete
De homem negro brasileiro.
A alma cacunda das ladeiras,
O uivo da lâmina do machado,
Os impulsos da mão de pilão,
A quebradeira e seus aleijos,
O sopro-enigma da juriti-pupu,
O cascudo debaixo da pedra
Daí o caroço da funda lágrima,
O gongo da infância em fogo-sezão.
ÁGUA DE ME INUNDAR
Como se a língua da tijubina
Me beijasse cada ferida,
O teu sopro nos meus cabelos de menino
Me azeita de febres e forças
Para a travessia interminável
À margem que me azougueia.
Mãe, minha índia,
Minha gamela de amor.
Mãe, minha vida,
Olho d’água cercado,
De onde tiro
Toda a água de beber,
A água de me inundar.
PELOS CHÃOS DA MALÍCIA PULSATIVA
Da voz conselheira de meu avô,
Tua coragem em me levar, mãe,
Pelos chãos da malícia pulsativa,
Entre arapucas rachadas de sol,
Sob o canto religioso dos azulões,
Com os pés em vitória sobre as corcundas
Espinhosas dos caminhos da roça
E a desconfiança das sementes não vingadas.
Do fogo que me marcou o corpo,
Tua habilidade em me mergulhar no rio
Do teu perene afeto, me sarar
E me salvar do não existir.
A cacimba do teu olhar me protege
Dos afogamentos que o carrasco funda.
NA CABEÇA DO MUNDO
Quero desabar sobre a cabeça do mundo,
Explodir meus fracassos no cotovelo do abandono.
Quero desabar sobre a cabeça do mundo,
Ficar ao lado daquele cavalo morto na entrada da cidade.
Quero desabar sobre a cabeça do mundo,
Fundar doze novos tristes jardins no seio da silenciosfera.
Quero desabar sobre a cabeça do mundo,
Gozar no íntimo de uma folha de palmeira da língua vermelha.
Quero desabar sobre a cabeça do mundo,
Festejar a pedra, a queda, a ferida e a utopia.
I.
O intamanhável |nada além me cabe|
Goza na solidão do meu desejo.
Morro na tapera, que no peito abre,
Junto à borboleta no azulejo.
O insabinhável |nada além me sabe|
Chora um pensamento no meu cortejo,
Sigo o caminho dos céus como uma ave,
O pássaro e a alma abertos ao meio.
O inumbigável |nada além me guarda|
Quebra toda a cabaça do universo
E a reinventa na mão da costureira.
O impoemável |nada além me sabre|
Reclama algum lugar dentro do inverso,
Recostado ao quente do teu seio.
II.
O inespelhável |nada além me fita|
Contempla minha cicatriz antiga,
Cerzida no espanto de sons da lira,
Lateja-me esta chaga da utopia.
O ilamparinável |nada além me arde|
Guia-me pelo atalho de alvas pedras,
Mergulho no olho d’água da saudade
Quando a semente ancestral me desperta.
O ilagartável |nada além me foge|
Escorre a areia sagrada da pele
Na rabanada azul do seu chicote.
O iliriável |nada além me fere|
Um perfume desmaiado me cega
Dentro da contínua malícia aberta.
III.
O ilabiável |nada além me fala|
Passa-me liso pelos gorgomilos.
Como a libélula que os olhos lava,
Nutre-me a alma com cânticos de grilos.
O inorelhável |nada além me assunta|
– ninguém tão bem me protege o segredo –
Labirinto do verbo que me funda,
Safa-me dos cães os trêmulos dedos.
O inestrelável |nada além me brilha|
Abriga um incomum lápis de luz
Que, agora, me salva do suicídio.
O inenodoável |nada além me suja|
Oculta a tatuagem de caju
Debaixo das chagas que em mim pulsam.
IV.
O inacangalhável |nada além me aba|
Completa-me o corpo tão mutilado,
Renova os tecidos da minha casca,
Toca-me os pés pelo chão magoado.
O inabalaiável |nada além me vaza|
Derrama-me as vestes de um tempo ácido,
O estilhaço de um perdido sorriso,
Dos meus azulões cada uma das asas.
O inembirável |nada além me livra|
Laça-me ao íntimo das cacimbas,
Enreda-me aos seios de Zulmira.
O inensapucaiável |nada além me lê|
Tece-me na sombra da ladeira infinita,
Canta o segredo um índio: fulô, quatetê!
A OUTRA MARGEM
Sou dessas sementes desacreditadas
Que o vento rouba das cercas da morte
E lança na outra margem do rio
Pelo milagre do bico do pássaro.
O NARIZ DA MINHA MÃE SANGRA...
Enquanto o político derrocado
Posa de moralista na estação de rádio,
O nariz da minha mãe sangra.
Enquanto jogam peteca a cidade e o caos
Nas fendas da ladeira vermelha do sono,
O nariz da minha mãe sangra.
Enquanto o trânsito segue áspero
E a delicadeza murcha
Nas hortas e palavras (dos homens?),
O nariz da minha mãe sangra.
Enquanto as filas não diminuem
No número de desrespeito
E o farmacêutico vende pílulas antiamor,
O nariz da minha mãe sangra.
Como se falasse com Deus,
Toda vez que me toma nos braços
E me embala com o curioso cântico
— tingadonga-donga-donga/
Tingandanga-danga-danga --
O nariz da minha mãe
Morre o sangue e vive o sonho.
CLARÃO
A fome – ave de rapina –
Fita o que nos desalimenta,
Cada farelo que nos consome:
Os ásperos grãos
De pão,
De guerras,
De prêmios,
De dinheiro,
De poder...
Caberia tudo
Num só clarão de espanto ou
Num bater de asas sovinas?
A fome, de modo inclemente,
Mata com pílulas de culpa,
De exílios e silêncios cortantes!
Um sonho de capa de jornal:
Em fase de inapetência e autoflagelo,
A fome suicida-se,
Com uma garfada,
No fundo da vasilha
Em que jantava vazios.
ZUNIDO
Na carcaça da noite me desespero,
Ardo em febre, ansiedade e medo.
De pés virados no leito, ao relento,
Sou engolido pela angústia do tempo.
Penso na velha Iaiá, rezadeira morta,
E um sussurro atravessa a porta
Do meu esconderijo de sombras.
Como se falasse por um cazumbi,
Uma voz, caindo-me sobre os ombros,
Expele a cólera de um bicho: e daí?
Reviro-me nas camadas do sono,
Meus olhos se dilatam em espanto.
Choro, como em esquecidos outonos,
Uma dor pronunciada em esperanto.
A agonia se instala nos cômodos da casa
E desmaio no poço de um mito raso.
Que morto é esse que me abraça,
Quando se revela um absurdo zunir?
Uma mosca sem mãe cospe no vaso
O ruído sujo, bizarro — e daí?
A desdita da noite se estende,
Aves de mau agouro desatam o canto.
Desalumiado, um silêncio geme
E a lágrima desaba em contracanto.
Como se o sonho morresse de pranto
Por uma cruel adaga que nos abre aqui:
O inseto do nojo zune na fresta — e daí?
LÂMINA E LIAME
A casca deste chão
É o umbigo da minha voz.
Do trançado das folhas de palmeira
A substância da rosa de Celso Antônio:
Os meus 24 centímetros de porrete
De homem negro brasileiro.
A alma cacunda das ladeiras,
O uivo da lâmina do machado,
Os impulsos da mão de pilão,
A quebradeira e seus aleijos,
O sopro-enigma da juriti-pupu,
O cascudo debaixo da pedra
Daí o caroço da funda lágrima,
O gongo da infância em fogo-sezão.
ÁGUA DE ME INUNDAR
Como se a língua da tijubina
Me beijasse cada ferida,
O teu sopro nos meus cabelos de menino
Me azeita de febres e forças
Para a travessia interminável
À margem que me azougueia.
Mãe, minha índia,
Minha gamela de amor.
Mãe, minha vida,
Olho d’água cercado,
De onde tiro
Toda a água de beber,
A água de me inundar.
PELOS CHÃOS DA MALÍCIA PULSATIVA
Da voz conselheira de meu avô,
Tua coragem em me levar, mãe,
Pelos chãos da malícia pulsativa,
Entre arapucas rachadas de sol,
Sob o canto religioso dos azulões,
Com os pés em vitória sobre as corcundas
Espinhosas dos caminhos da roça
E a desconfiança das sementes não vingadas.
Do fogo que me marcou o corpo,
Tua habilidade em me mergulhar no rio
Do teu perene afeto, me sarar
E me salvar do não existir.
A cacimba do teu olhar me protege
Dos afogamentos que o carrasco funda.
NA CABEÇA DO MUNDO
Quero desabar sobre a cabeça do mundo,
Explodir meus fracassos no cotovelo do abandono.
Quero desabar sobre a cabeça do mundo,
Ficar ao lado daquele cavalo morto na entrada da cidade.
Quero desabar sobre a cabeça do mundo,
Fundar doze novos tristes jardins no seio da silenciosfera.
Quero desabar sobre a cabeça do mundo,
Gozar no íntimo de uma folha de palmeira da língua vermelha.
Quero desabar sobre a cabeça do mundo,
Festejar a pedra, a queda, a ferida e a utopia.
Carvalho Junior [Caxias/MA, 1985 -2021]. Professor e versicultor brasileiro. Vencedor do Troféu Nauro Machado [I Festival Maranhense de Conto e Poesia, Universidade Estadual do Maranhão, 2015] e do Prêmio Gonçalves Dias [Associação Maranhense de Escritores Independentes, 2020]. Publicou cinco livros de poemas, sendo os mais recentes: No alto da ladeira de pedra (Editora Patuá, 2017) e O homem-tijubina & outras cipoadas entre as folhagens da malícia (Editora Patuá, 2019). Membro da Academia Caxiense de Letras e da ASLEAMA, pesquisa vida e obra do poeta Déo Silva. Faz parte dos coletivos de autores Academia Fantaxma, Os Integrantes da Noite e O Arco e a Lira. Participou com o poema Abrigos da Exposição POESIA AGORA (Itaú Cultural, Rio de Janeiro, 2017). Edita a página de poesia Quatetê. Integra o Conselho Editorial do Círculo Poético de Xique-Xique. Tem poemas publicados em jornais, antologias e revistas literárias do Brasil e do exterior. Possui poemas vertidos para o espanhol por Antonio Torres e Clarissa Macedo.
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José Couto (Porto Alegre/RS). Professor e poeta brasileiro. É o autor de “A impermanência da escrita” (2010), “O soneto de Pandora” (2017) e “O unicórnio do sul e outras lendas poéticas” com ilustrações de Luiza Maciel Nogueira (2018). E dos inéditos “quase quasares” poesia,”Sete Cânticos Negros”, poesia, arte plástica e música, TOTEM (poesias a quatro mãos) com arte de Artur Madruga.
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