Poemas & Poetas indeléveis de 2021:
Claudio Daniel
18 de dezembro de 2021
seleção de José Couto
por Claudio Daniel
seleção de José Couto
por Claudio Daniel
PRIMEIRO OLHO
Água escura,
Excessiva, cai
Sobre cabeças de alfinete;
Somos minúsculos pontos
Borrados, quase invisíveis.
Ruídos esfiapados de metais
Somam–se aos gritos
Estilhaçados da noite.
Caminhamos dessa rua
A outra rua, entre dedos
De árvores e mariposas
Epidérmicas, mas nada vemos:
Nem as flores das ameixeiras,
Nem os fios estorricados;
Estamos cegos, talvez meio mortos,
Como diabos frios no redemoinho.
Quando amanhece, mundo
Recém-criado e mudo,
O olho curvo do pesadelo
Mira espectros quase nus
Roendo restos de ossos
Na porta do açougue.
Xangô Oluaxô,
Venha com seu machado
De duplo gume.
SEGUNDO OLHO
Minúsculos cães inauguram o inverno.
A rosa dos ventos está morta.
Rasgada entranha.
Ângulos agudos enlouquecem
E a noite, como um palhaço de circo,
Esfaqueia as nuvens.
O reflexo da lua em um prato vazio.
Homens de barro marcham nas ruas
Com uniformes verde-oliva:
Inânimes ou brutais;
Poros ou pedras,
Veias petrificadas como esqueletos
De sáurios;
Cruéis como a noite branca;
Inúteis como lesmas brancas;
Rutilam, estridentes,
Como flores artificiais
Feitas de iniquidade.
No princípio era o estranho
Refém do futuro
Um rio escuro sem nome,
Alguém sem cabeça;
Depois, a serpente devorou
A si mesma.
Um sussurro me disse o teu nome,
O teu lindo nome,
Escrito no livro da terra,
E nós lutaremos contra o Não.
TERCEIRO OLHO
Para Henri Michaux
Galho
De árvore
Corcunda.
Cabeças
Cúbicas
De formigas.
Paisagem
De margens mudas
Onde o vento
Sopra
Ao contrário.
Onde as pedras
Não são mais pedras.
Ninguém vive
Aqui.
Aranhas tecem teias
Nos meus
Pesadelos.
Salamandra procria
No fundo
De meu olho direito.
Este não é o Olho de Buda.
Paisagem construída
Com dedos
E unhas
De mortos;
Com a pele,
Cabelos
E olhos
De mortos.
Meu pai,
Um mapa borrado;
Minha mãe,
Bússola
Sem ponteiros;
Eu mesmo,
Pedra negra
No tabuleiro
De xadrez.
Apenas sombras
Uivam.
Tudo tão pesado,
Tão pesado,
Âncora de pensamentos.
Tudo tão
Detestável.
Por que as geleiras,
Por que os abismos?
Faca desenha círculos
Concêntricos
Na água estagnada,
À esquerda
De lugar algum.
Este não é o Olho de Shiva.
Formas desfiguradas
Em farrapos.
Essa escada que não leva
A parte alguma.
Palavras, palavras, palavras
Já não fazem mais
Sentido.
Silêncio.
Depois, espectros escrotos
Em alto-falantes
Anunciam a morte
De Deus.
O terceiro olho
Então
Se abre.
QUARTO OLHO
Para Scheila D. Sodré
À beira
Do arco-íris
De possibilidades,
Leão amarelo
Desfolha
Lua nova;
Vento verde
Assopra
Dentes-de-leão.
A língua
Da meia-noite
Se enrosca
Nos dedos
Do meio-dia;
Teus olhos-
Lakhsmi
Encontram
Meus lábios-
Yamuna.
Um sol bruxo
Sobre girassóis;
Centopeias
Piscam pálpebras
Num átimo
De segundo.
Flor-esmeralda
Adorna
Teu cabelo.
E até o fim
Do mundo,
No asperamente
Da civilização
Em ruínas,
Meu braço
Em tua cintura.
QUINTO OLHO
Riscante
Riscante, faiscante
Furiais, furiais
Percorre a luz
Percorre, repercorre
Percorre a luz
Por isso dançamos
Por isso dançamos
Riscante
Riscante, faiscante
Furiais, furiais
Percorre a luz
Por isso dançamos
Por isso dançamos
Olhos sem línguas
Línguas sem olhos
Eritrinas esfumadas
Eritrinas, eritrinas
Repercorre a luz
Por isso dançamos
Por isso dançamos
Furentes, furiais
Eritrinas esfumadas,
Eritrinas, eritrinas
Repercorre a luz
Farripas, faúlhas
Favilas, eritrinas
Repercorre a luz
Por isso dançamos
SEXTO OLHO
Olho na pétala da flor
Olho na pluma da arara vermelha
Olho na pétala da flor
Olho na pluma da arara vermelha
O canto do nambu
E a nebulosa cabeça de cavalo
O canto do nambu
E a nebulosa cabeça de cavalo
O canto do agapanto
E o luzeiro azulino da cauda do pavão
O canto do agapanto
E o luzeiro azulino da cauda do pavão
Olho na pétala da flor
Olho na pluma da arara vermelha
Olho na pétala da flor
Olho na pluma da arara vermelha
O canto do nambu
E a nebulosa cabeça de cavalo
O canto do nambu
Porque o teu nome queima em meus olhos
Baobás indenes remanência
Porque o teu nome queima em meus olhos
Baobás indenes remanência
Olho na pétala da flor
Olho na pétala da flor
Olho na pétala da flor
SÉTIMO OLHO
Dias-cutelo
De escuros dentro
Flor de loucura
Ou apenas corrosão
Pele-nervos
Pele-ossos
Aquilo que canta dentro
Na sombra
Esterco a origem do mundo
A grande cloaca
Do mundo
O ganido de cães
E pedras podres
Outro eu, esqueleto de mim
Escuros dentro
Palavras ásperas
Como lascas
Temor tumulto
Asco de tudo
No lado de fora
Do crânio
Escuros, desencaixe
De tudo, algaravias
O osso do agora
Teus olhos
Em meus lábios
Folhas trêmulas
Ao vento
E um dia,
Revolução
A FALA DO OLHO
Não vejo mais
A flor
De pétalas
Roxas
No canteiro
Do jardim
Nem a chuva
Luminosa
Dos dentes-
De leão.
Não vejo mais
O reflexo
Da lua
Na minúscula
Gota d’água
No caule
Da vagem
Nem a cereja
Vermelha.
Não vejo mais
A sombra
Do ninho
De vespas
Nem o rosto
Do soldado
Que me cegou
Com balas
De borracha.
Agora
Tenho apenas
O escuro fundo
Dos céus
De tempestade
E a memória
De um raio
De luz
Vermelha
Como a vida.
Água escura,
Excessiva, cai
Sobre cabeças de alfinete;
Somos minúsculos pontos
Borrados, quase invisíveis.
Ruídos esfiapados de metais
Somam–se aos gritos
Estilhaçados da noite.
Caminhamos dessa rua
A outra rua, entre dedos
De árvores e mariposas
Epidérmicas, mas nada vemos:
Nem as flores das ameixeiras,
Nem os fios estorricados;
Estamos cegos, talvez meio mortos,
Como diabos frios no redemoinho.
Quando amanhece, mundo
Recém-criado e mudo,
O olho curvo do pesadelo
Mira espectros quase nus
Roendo restos de ossos
Na porta do açougue.
Xangô Oluaxô,
Venha com seu machado
De duplo gume.
SEGUNDO OLHO
Minúsculos cães inauguram o inverno.
A rosa dos ventos está morta.
Rasgada entranha.
Ângulos agudos enlouquecem
E a noite, como um palhaço de circo,
Esfaqueia as nuvens.
O reflexo da lua em um prato vazio.
Homens de barro marcham nas ruas
Com uniformes verde-oliva:
Inânimes ou brutais;
Poros ou pedras,
Veias petrificadas como esqueletos
De sáurios;
Cruéis como a noite branca;
Inúteis como lesmas brancas;
Rutilam, estridentes,
Como flores artificiais
Feitas de iniquidade.
No princípio era o estranho
Refém do futuro
Um rio escuro sem nome,
Alguém sem cabeça;
Depois, a serpente devorou
A si mesma.
Um sussurro me disse o teu nome,
O teu lindo nome,
Escrito no livro da terra,
E nós lutaremos contra o Não.
TERCEIRO OLHO
Para Henri Michaux
Galho
De árvore
Corcunda.
Cabeças
Cúbicas
De formigas.
Paisagem
De margens mudas
Onde o vento
Sopra
Ao contrário.
Onde as pedras
Não são mais pedras.
Ninguém vive
Aqui.
Aranhas tecem teias
Nos meus
Pesadelos.
Salamandra procria
No fundo
De meu olho direito.
Este não é o Olho de Buda.
Paisagem construída
Com dedos
E unhas
De mortos;
Com a pele,
Cabelos
E olhos
De mortos.
Meu pai,
Um mapa borrado;
Minha mãe,
Bússola
Sem ponteiros;
Eu mesmo,
Pedra negra
No tabuleiro
De xadrez.
Apenas sombras
Uivam.
Tudo tão pesado,
Tão pesado,
Âncora de pensamentos.
Tudo tão
Detestável.
Por que as geleiras,
Por que os abismos?
Faca desenha círculos
Concêntricos
Na água estagnada,
À esquerda
De lugar algum.
Este não é o Olho de Shiva.
Formas desfiguradas
Em farrapos.
Essa escada que não leva
A parte alguma.
Palavras, palavras, palavras
Já não fazem mais
Sentido.
Silêncio.
Depois, espectros escrotos
Em alto-falantes
Anunciam a morte
De Deus.
O terceiro olho
Então
Se abre.
QUARTO OLHO
Para Scheila D. Sodré
À beira
Do arco-íris
De possibilidades,
Leão amarelo
Desfolha
Lua nova;
Vento verde
Assopra
Dentes-de-leão.
A língua
Da meia-noite
Se enrosca
Nos dedos
Do meio-dia;
Teus olhos-
Lakhsmi
Encontram
Meus lábios-
Yamuna.
Um sol bruxo
Sobre girassóis;
Centopeias
Piscam pálpebras
Num átimo
De segundo.
Flor-esmeralda
Adorna
Teu cabelo.
E até o fim
Do mundo,
No asperamente
Da civilização
Em ruínas,
Meu braço
Em tua cintura.
QUINTO OLHO
Riscante
Riscante, faiscante
Furiais, furiais
Percorre a luz
Percorre, repercorre
Percorre a luz
Por isso dançamos
Por isso dançamos
Riscante
Riscante, faiscante
Furiais, furiais
Percorre a luz
Por isso dançamos
Por isso dançamos
Olhos sem línguas
Línguas sem olhos
Eritrinas esfumadas
Eritrinas, eritrinas
Repercorre a luz
Por isso dançamos
Por isso dançamos
Furentes, furiais
Eritrinas esfumadas,
Eritrinas, eritrinas
Repercorre a luz
Farripas, faúlhas
Favilas, eritrinas
Repercorre a luz
Por isso dançamos
SEXTO OLHO
Olho na pétala da flor
Olho na pluma da arara vermelha
Olho na pétala da flor
Olho na pluma da arara vermelha
O canto do nambu
E a nebulosa cabeça de cavalo
O canto do nambu
E a nebulosa cabeça de cavalo
O canto do agapanto
E o luzeiro azulino da cauda do pavão
O canto do agapanto
E o luzeiro azulino da cauda do pavão
Olho na pétala da flor
Olho na pluma da arara vermelha
Olho na pétala da flor
Olho na pluma da arara vermelha
O canto do nambu
E a nebulosa cabeça de cavalo
O canto do nambu
Porque o teu nome queima em meus olhos
Baobás indenes remanência
Porque o teu nome queima em meus olhos
Baobás indenes remanência
Olho na pétala da flor
Olho na pétala da flor
Olho na pétala da flor
SÉTIMO OLHO
Dias-cutelo
De escuros dentro
Flor de loucura
Ou apenas corrosão
Pele-nervos
Pele-ossos
Aquilo que canta dentro
Na sombra
Esterco a origem do mundo
A grande cloaca
Do mundo
O ganido de cães
E pedras podres
Outro eu, esqueleto de mim
Escuros dentro
Palavras ásperas
Como lascas
Temor tumulto
Asco de tudo
No lado de fora
Do crânio
Escuros, desencaixe
De tudo, algaravias
O osso do agora
Teus olhos
Em meus lábios
Folhas trêmulas
Ao vento
E um dia,
Revolução
A FALA DO OLHO
Não vejo mais
A flor
De pétalas
Roxas
No canteiro
Do jardim
Nem a chuva
Luminosa
Dos dentes-
De leão.
Não vejo mais
O reflexo
Da lua
Na minúscula
Gota d’água
No caule
Da vagem
Nem a cereja
Vermelha.
Não vejo mais
A sombra
Do ninho
De vespas
Nem o rosto
Do soldado
Que me cegou
Com balas
De borracha.
Agora
Tenho apenas
O escuro fundo
Dos céus
De tempestade
E a memória
De um raio
De luz
Vermelha
Como a vida.
Claudio Daniel é poeta, ensaísta, tradutor e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), onde defendeu a tese A recepção da poesia japonesa em Portugal. Realizou o pós-doutoramento em Teoria Literária pela Universidade Federal de Minas Gerais. Curador de Literatura e Poesia no Centro Cultural São Paulo entre 2010 e 2014. Colaborou na revista CULT. Editor da Zunái, Revista de Poesia e Debates. Publicou os livros de poesia Sutra (1992), Yumê (1999), A sombra do leopardo (2001), Figuras metálicas (2005), Fera bifronte (2009), Letra negra (2010), Cores para cegos (2012), Esqueletos do nunca (2015), Livro de orikis (2015), Portão 7 (2019), Cadernos bestiais (2019) e o livro de contos Romanceiro de Dona Virgo (2004), entre outros títulos. Como tradutor, publicou a antologia Jardim de camaleões, a poesia neobarroca na América Latina (2004) e antologias do poeta cubano José Kozer, do argentino Reynaldo Jiménez, do uruguaio Victor Sosa e do dominicano León Félix Batista, além da antologia Ovi-Sungo, Treze poetas de Angola. Em Portugal, publicou a antologia poética pessoal Escrito em Osso. Marabô Obatalá, poesia (Kotter Editorial, 2020) e Mojubá, romance ( Kotter Editorial, 2021) são suas últimas publicações.
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José Couto (Porto Alegre/RS). Professor e poeta brasileiro. É o autor de “A impermanência da escrita” (2010), “O soneto de Pandora” (2017) e “O unicórnio do sul e outras lendas poéticas” com ilustrações de Luiza Maciel Nogueira (2018). E dos inéditos “quase quasares” poesia,”Sete Cânticos Negros”, poesia, arte plástica e música, TOTEM (poesias a quatro mãos) com arte de Artur Madruga.
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