Dois poemas de Cyane Pacheco
08 de janeiro de 2022
por Cyane Pacheco
por Cyane Pacheco
Cada palavra guarda um mistério
Que se desdobra
E gira numa espiral oculta
Cada letra de cada palavra
Na direção do amor
Há de ser macia e iterada
Como o toque sagrado dos lábios
Como uma joia guardada na lembrança
Cada palavra inscrita
Na pele dos corpos das escolhas
E nos tremores primeiros da temperança
Há que se revestir de sonhos
Os espaços entre os caracteres
Escritos sem carbono
Nas folhas verdes das letras
Abreviar os três ângulos escusos
No descarte da expressão vertical do grito
Na lâmina de gelo do interdito
Quando postos na direção paralela dos gestos
Na lenda patriarcal do uso
Rito da obscura cena
Entre o frio
Morte do poema
E um forno de poros
Ouroboros de suores do rio
Jogo no papel de arroz
As escrituras
Os palimpsestos do gesto ominoso
A fresta de um vão perverso
Imóvel diante da pena dos devotos
O cilíndrico do espanto dos mortos
O eixo que gira bêbado
Em torno de si mesmo
Fulgor soberbo
Nos ponteiros que o sol acende
Escrita que dura o susto do encanto
O corte dos pés
Nos vítreos fragmentos do caminho
Como se o tapete de olhos fosse macio
Frio da ausência dos momentos
O gesto que se afasta no papel
Perdido na memória do verbete
Entrega-se ao vezo
Na omissão do que finge
Medo de ficar só
Ardor que finda a tormenta
Áspera tez
Dó da espera lenta
Lapso que revela o pesadelo
Da violenta nudez da esfinge
Dizer o nome do poeta
É correr o risco de morte
Mais do que repetir sua poesia
Afundar os pés bêbados no gelo
O que se fuzila
Não é o homem que se mira
Nem seus pés grises
São as sementes que escapam da garganta
Quem mata desconhece o gérmen
Salvo por um fio de voz
Adormecida até que morra o algoz
Quando então rebenta e brota
Sobre o solo devastado
Pelos cascos dos homens
E seus horrores
O poeta descobre as máscaras
Veladas dos opressores
E propaga seus impuros nomes
Sob pena de encarceramento
Ou morte nos breves futuros
Abrolha e vigia a presença do verdugo
Cuja função é varrer as escrituras
Das páginas dos livros
Da memória do povo
O déspota detém as engrenagens
Onde as palavras são impressas
No expatriado território das letras
Oculta aos olhos da turba
Como vespas ferozes
Eles os algozes
Degredam a clássica formação
A cultura que caminha descalça
Nas feiras
Nos bares
Que percalça os enigmas do tempo
Inteiras expressões que vêm de longe
Cobertas da crueza do horror
E do selvagem elã
Onde os ambivalentes olhares se cruzam
O poeta desfalece de fome
A todo o instante
Quando avista a fuga
Dos aturdidos versos
Temerosos da violência das esquinas
Dos fuzis
Dos porões
E das duras e mortais disciplinas
Onde os totalitaristas caminham
O poeta alcança sobre os mitos
E os escombros das civilizações
As gemas das palavras que iluminam
Retirado do ócio
Trêmulo de medo
Ou valente ante o desespero
Posto que suas crises
E seus apelos
Em todas as grades invisíveis
Do remoto confinamento
O poeta planta
Um par de bigodes de barata
Nas fuças do carnífice
Não inscreve as palavras
Nos cubos de gelo
Nos berços das vagas
Sem embargo as lê
Para os amigos
E seus laços estreitos
Débil e obcecada
Sua mulher decora cada estrofe
De cada verso
Privada do mínimo
Não desanima naquelas esferas
Sem os dedos em seu corpo
Sequer um mimo
Ressequido querer guardado em si
Cartas e poemas
Infinitas tristezas dos lugares
Das traições do poeta e companheiro
Onde as mulheres recolhem dentro do peito
Os horrores
De janeiro a janeiro
E guardam os explosivos
Na paisagem álgida e branca
Dos limites indivisos
Poemas que não lhes foram dirigidos
E desesperada entende
O quanto são precisos
Para o homem confinado
Poeta Poeta Poeta
Amante das numerosas mulheres
E das palavras de sua obra
Quem repetisse o que ele disse
Seria degredado
Para um desconhecido destino
Um campo de trabalho
Uma enfermaria
Morreria de fome e de frio
Não escaparia dos olhares atentos
Da polícia e do desenho do tempo
Ele foi um mestre
E falou sobre a vida
E a morte
E a fome
Perpetuou suas palavras
Além da tirania
Na memória das gerações futuras
Sobreviveu à imagem do senhor da morte
Aos seus bigodes doentios
E credores
Déspota da palavra e dos gestos
Em seus delirantes ares
De poder
De vaidade
Sonhou em asfixiar o poeta
O poeta continuou respirando
E abrindo os olhos do futuro
Ante seu temor na fuga opressa
Da garganta da poesia
Convulsiona sob os coturnos
Falou do ar
E do aço
Além da verdade
Despiu o verdugo sobre o papel
Ali descreveu a pressa
A fome
A fúria
A distrofia
O tifo
Morreu nos dias hediondos
Ninguém sabe onde repousam os seus restos
Se na aguda ponta de uma lança
Onde a poesia passeia
Com os cabelos soltos
Ou presos aos gritos indizíveis
O poeta sabe que a liberdade não existe
É algo como uma pedra escura
No leito dos rios congelados
O convite do poder
A glorificar o espúrio
O fez riscar à fina ironia da palavra
E apequena em demasia
Os que o mataram
E continuam diariamente
Atentando contra os artistas
Ele num arroubo de ode à vida
Rasgou a lista dos condenados à morte
Para ela que decorava
E repetia seus versos até desfalecer
De fome e de frio
Que lobrigou o desespero
No lugar onde fora retido
Não havia luz
Retirou da pele do corpo
Da memória
Do fosso
Do lugar da criação
Todos os ossos das letras
Que foi capaz
Foi um inocente diante de um déspota
Ali na construção soturna
Do que se desvirtuava no tempo
Não era permitida a rebeldia da palavra
Mortos
Humilhados
E enclausurados
São todos poetas
Como ele e seus companheiros de luta
E as moças que bordavam em círculo
E a bocarra da história
Fará ainda mais justiça
Porque não perseveram aqueles
Que matam os que resistem
Sua fala foi guardada para sempre
E rememorada aos gritos
Nas pétalas das rosas de papel
Nos armários dos livros
Que se desdobra
E gira numa espiral oculta
Cada letra de cada palavra
Na direção do amor
Há de ser macia e iterada
Como o toque sagrado dos lábios
Como uma joia guardada na lembrança
Cada palavra inscrita
Na pele dos corpos das escolhas
E nos tremores primeiros da temperança
Há que se revestir de sonhos
Os espaços entre os caracteres
Escritos sem carbono
Nas folhas verdes das letras
Abreviar os três ângulos escusos
No descarte da expressão vertical do grito
Na lâmina de gelo do interdito
Quando postos na direção paralela dos gestos
Na lenda patriarcal do uso
Rito da obscura cena
Entre o frio
Morte do poema
E um forno de poros
Ouroboros de suores do rio
Jogo no papel de arroz
As escrituras
Os palimpsestos do gesto ominoso
A fresta de um vão perverso
Imóvel diante da pena dos devotos
O cilíndrico do espanto dos mortos
O eixo que gira bêbado
Em torno de si mesmo
Fulgor soberbo
Nos ponteiros que o sol acende
Escrita que dura o susto do encanto
O corte dos pés
Nos vítreos fragmentos do caminho
Como se o tapete de olhos fosse macio
Frio da ausência dos momentos
O gesto que se afasta no papel
Perdido na memória do verbete
Entrega-se ao vezo
Na omissão do que finge
Medo de ficar só
Ardor que finda a tormenta
Áspera tez
Dó da espera lenta
Lapso que revela o pesadelo
Da violenta nudez da esfinge
Dizer o nome do poeta
É correr o risco de morte
Mais do que repetir sua poesia
Afundar os pés bêbados no gelo
O que se fuzila
Não é o homem que se mira
Nem seus pés grises
São as sementes que escapam da garganta
Quem mata desconhece o gérmen
Salvo por um fio de voz
Adormecida até que morra o algoz
Quando então rebenta e brota
Sobre o solo devastado
Pelos cascos dos homens
E seus horrores
O poeta descobre as máscaras
Veladas dos opressores
E propaga seus impuros nomes
Sob pena de encarceramento
Ou morte nos breves futuros
Abrolha e vigia a presença do verdugo
Cuja função é varrer as escrituras
Das páginas dos livros
Da memória do povo
O déspota detém as engrenagens
Onde as palavras são impressas
No expatriado território das letras
Oculta aos olhos da turba
Como vespas ferozes
Eles os algozes
Degredam a clássica formação
A cultura que caminha descalça
Nas feiras
Nos bares
Que percalça os enigmas do tempo
Inteiras expressões que vêm de longe
Cobertas da crueza do horror
E do selvagem elã
Onde os ambivalentes olhares se cruzam
O poeta desfalece de fome
A todo o instante
Quando avista a fuga
Dos aturdidos versos
Temerosos da violência das esquinas
Dos fuzis
Dos porões
E das duras e mortais disciplinas
Onde os totalitaristas caminham
O poeta alcança sobre os mitos
E os escombros das civilizações
As gemas das palavras que iluminam
Retirado do ócio
Trêmulo de medo
Ou valente ante o desespero
Posto que suas crises
E seus apelos
Em todas as grades invisíveis
Do remoto confinamento
O poeta planta
Um par de bigodes de barata
Nas fuças do carnífice
Não inscreve as palavras
Nos cubos de gelo
Nos berços das vagas
Sem embargo as lê
Para os amigos
E seus laços estreitos
Débil e obcecada
Sua mulher decora cada estrofe
De cada verso
Privada do mínimo
Não desanima naquelas esferas
Sem os dedos em seu corpo
Sequer um mimo
Ressequido querer guardado em si
Cartas e poemas
Infinitas tristezas dos lugares
Das traições do poeta e companheiro
Onde as mulheres recolhem dentro do peito
Os horrores
De janeiro a janeiro
E guardam os explosivos
Na paisagem álgida e branca
Dos limites indivisos
Poemas que não lhes foram dirigidos
E desesperada entende
O quanto são precisos
Para o homem confinado
Poeta Poeta Poeta
Amante das numerosas mulheres
E das palavras de sua obra
Quem repetisse o que ele disse
Seria degredado
Para um desconhecido destino
Um campo de trabalho
Uma enfermaria
Morreria de fome e de frio
Não escaparia dos olhares atentos
Da polícia e do desenho do tempo
Ele foi um mestre
E falou sobre a vida
E a morte
E a fome
Perpetuou suas palavras
Além da tirania
Na memória das gerações futuras
Sobreviveu à imagem do senhor da morte
Aos seus bigodes doentios
E credores
Déspota da palavra e dos gestos
Em seus delirantes ares
De poder
De vaidade
Sonhou em asfixiar o poeta
O poeta continuou respirando
E abrindo os olhos do futuro
Ante seu temor na fuga opressa
Da garganta da poesia
Convulsiona sob os coturnos
Falou do ar
E do aço
Além da verdade
Despiu o verdugo sobre o papel
Ali descreveu a pressa
A fome
A fúria
A distrofia
O tifo
Morreu nos dias hediondos
Ninguém sabe onde repousam os seus restos
Se na aguda ponta de uma lança
Onde a poesia passeia
Com os cabelos soltos
Ou presos aos gritos indizíveis
O poeta sabe que a liberdade não existe
É algo como uma pedra escura
No leito dos rios congelados
O convite do poder
A glorificar o espúrio
O fez riscar à fina ironia da palavra
E apequena em demasia
Os que o mataram
E continuam diariamente
Atentando contra os artistas
Ele num arroubo de ode à vida
Rasgou a lista dos condenados à morte
Para ela que decorava
E repetia seus versos até desfalecer
De fome e de frio
Que lobrigou o desespero
No lugar onde fora retido
Não havia luz
Retirou da pele do corpo
Da memória
Do fosso
Do lugar da criação
Todos os ossos das letras
Que foi capaz
Foi um inocente diante de um déspota
Ali na construção soturna
Do que se desvirtuava no tempo
Não era permitida a rebeldia da palavra
Mortos
Humilhados
E enclausurados
São todos poetas
Como ele e seus companheiros de luta
E as moças que bordavam em círculo
E a bocarra da história
Fará ainda mais justiça
Porque não perseveram aqueles
Que matam os que resistem
Sua fala foi guardada para sempre
E rememorada aos gritos
Nas pétalas das rosas de papel
Nos armários dos livros