Desjejum, um conto do livro
Nunca estivemos no Kansas
13 de fevereiro de 2022
por Thássio Ferreira
por Thássio Ferreira
Vai parecer literatura (es)forçada, por eu me lembrar de muitos detalhes. Não todos. Nunca lembramos tudo. Quando alguém diz que se lembra de algo “nos mínimos detalhes”, sempre brinco de adivinhar quais são inventados, consciente ou inconscientemente. Sintam-se à vontade pra fazer o mesmo, mas prometo que tentarei não inventar nada. Às vezes é difícil.
Eu lembro a cidade, claro, mas isso não é importante. Podem inventar vocês, então. Uma cidade ao norte, bem dentro: longe do mar. Quente como uma febre. Desde que eu chegara, três noites antes, uma onda inusual de calor se deitara por cima da quentura habitual, tornando as horas mais densas, como se desse pra sentir as partículas de tudo vibrando mais intensamente, numa energia térmica a se entranhar até nas paredes. É curioso como o calor se infiltra na matéria. Eu já fora outras vezes ali, sempre a trabalho, mas não estava preparado praquele cozimento. Sem falar nas roupas: empapavam-se e grudavam assim que vestidas, mesmo no quarto refrigerado. O nome do hotel eu não lembro mesmo: podem inventar também. Era um hotel razoável, desses mal equilibrados entre a funcionalidade mais impessoal e alguns toques pitorescos pra fingir personalidade.
Naquela manhã eu acordara bem cedo, pra correr à beira-rio, até as ruínas da velha estação ferroviária. Na volta, como ainda tivesse tempo antes da primeira reunião, resolvi deixar a roupa social pra depois do café: tomei um banho gelado, vesti short e camiseta e desci ao salão onde era servido o bufê, no segundo andar.
As janelas do restaurante davam pro leste, e o sol, zarabatana, já pontilhava o interior do ambiente em raios quase paralelos ao chão, enquanto queimava imenso ao longe, pr’além das bordas da cidade, indiferente. Ou talvez receoso de lhe incendiar de vez, se chegasse mais perto.
Eu transpirava, claro, até nos pés: o corpo inteiro feito ainda fervilhando da corrida, o breve alívio do banho já evaporado. Enchi um copo de suco, outro de água e os levei à mesa. Após, servi-me de frutas: uma fatia gorda de melancia, uma banana, metade de um mamão e algumas uvas. Gosto de variedade.
Sentei-me a um canto, protegido do sol (até onde podemos nos iludir a esse respeito). Dois garçons, em ridículas gravatas-borboletas, revezavam-se limpando as mesas e repondo os itens do café, lentamente — o movimento de hóspedes ainda fraco. Acho que reparei o olhar dele, mas não tenho certeza: inquieto (?), como duvizagueando entre buscar e fugir. Voltei ao bufê: um pão, duas bolinhas de manteiga que já começavam a derreter e duas largas colheradas de ovos mexidos, meio esbranquiçados do leite que muitos hotéis jogam na mistura. Deixei o prato à mesa, peguei uma xícara e me dirigi à cafeteira, enorme, de metal cromado — feito um mudo homem de lata daquela Oz equatorial.
Dessa vez, lembro bem: ele me olhava. Com ar de emburrado, contrafeito, mas também… Alguma outra coisa. Num repente, me senti como em alto-relevo na paisagem do salão: suado, de regata e havaianas, em meio a funcionários e hóspedes em calças, camisas, sapatos, firulas. Algo escorria pelo meu canto esquerdo da boca: sumo de fruta abocanhada em gula. Passei a língua sobre a pele, até onde alcançava. Talvez fosse apenas isso: aquele sujeito sem um fio de cabelo fora do lugar, a barba feita, unhas curtas e limpas, eu conseguira reparar — eu lembro — recriminando minhas roupas, ou minha cara suja de comida feito a de um bicho. Provavelmente ambos. Fanáticos por ordem e pureza existem aos quaquizilhões, vigias atentos da vida alheia. Enchi minha xícara e rumei de volta.
Mas após o primeiro gole do café — fraco, pro meu gosto — antes da manteiga no pão ou de provar os ovos leitosos, eu o olhei. Não havia muito como evitá-lo, exceto por esforço intencional: um na direção do outro, e no entre, apenas três mesas vazias. Então de novo, agora sem dúvida: o olhar inquieto, algo recriminador, mas também… Alguma outra coisa. Eu me intrigava. Retribuí o enquadro, inclinando um quase nada a cabeça, leve desafio sem palavras: Que é? Pareceu se enraivecer um pouco, afrontado, antes de desviar os olhos pro celular pousado em cima da mesa e começar a tocar na tela com um dedo só, da mão direita, o outro braço pendendo reto, estendido até fora da minha visão. Ocupei-me de mim: tirei o miolo do pão, passei manteiga e recheei com os ovos. Comi com as mãos, lambuzando-me, deixando que a gordura pingasse no prato, lambendo os dedos: despeitado.
Satisfeito, me ergui pra última rodada, mirando a bandeja redonda onde um bolo alto de chocolate me dizia, em língua de calda, que sobremesa não tem hora. Bem enquanto eu passava, levantou-me a cabeça, e ora bodegas, lancei-lhe então um olhar como quem indaga: E agora, o quê? Percorreu meu rosto e desceu até os pés, globos salientes encimando um maxilar rígido, narinas expandidas, a face como um empurrão, mas, por trás, infiltrado feito o calor sôfrego: algum sinal cifrado, daqueles tão sutis que já são difíceis de perceber no momento, que dirá lembrar — e aqui, portanto, não invento, como prometido, mas conjecturo: talvez um meio sorriso esboçado na boca contraída, ou o peito se expandindo numa inspiração mais extensa, qualquer coisa meio mole entranhada na rocha, querendo intumescer. Sutil sim, mas (ainda) assim: um desabrocho. O importante é: eu percebi. Especialmente quando, a meio caminho entre minha cabeça e meus pés, diminuiu o ritmo da revista ao passar pelo short. Eu lembro — não digo nos mínimos detalhes, mas em detalhes suficientes.
No caminho de volta à mesa, espiei eu mesmo pra baixo, disfarçando o autoexame com a fatia de bolo equilibrada no prato. Sem cueca eu sabia. O que só então dei-me conta: notava-se. Mas isso em si, que tem de mais? Não era apenas afronta, então.
Ao sentar, ainda me encarava, a mão direita sobre a toalha, o braço esquerdo novamente escondido atrás da mesa (eu teria visto uma aliança, antes?). Fiz que não era comigo, pondo minha atenção no bolo de chocolate e no resto de café na xícara. O salão se enchia rápido, agora, zumbindo. Quando me levantei pra ir embora, o homem não estava mais lá: na mesa com pratos e copos sujos que o garçom ainda não recolhera. Tanto fazia.
Cruzei as portas de vidro do restaurante e ao fim do corredor pude vê-lo: de frente pro elevador. Conforme eu me aproximava, notou-me, retomando a expressão de raiva represada. Antes mesmo que eu chegasse perto, propriamente, disparou:
— Você não tem vergonha? De andar assim pela área comum do hotel? Ninguém é obrigado!
Tive tempo de enviar aos músculos a ordem pra responder — perguntar Assim como?, porque obrigar o absurdo à clareza costuma ser um bom jeito de lidar com ele — mas sua língua foi mais rápida que a minha, dois tons mais exaltada:
— Isso é um desrespeito, porra! Olha, olha…
Parecia não saber como continuar a frase: deu um suspiro, deixando cair aquela alguma coisa além de contrariedade. Agora, eu sabia o que era, e a recolhi invisivelmente antes de se espatifar no chão, enquanto me achegava mais e mais.
Segurei-lhe o rosto entre as mãos e(u lembro?): meus olhos abertos enxergando os dele se fecharem, a respiração sincronizando-se; e quando seus braços totalmente relaxados, o corpo entregue, a língua veloz buscando a minha já sem nenhum receio ou resistência, ávida, querendo se entranhar feito mormaço vivo, é justo quando me afasto, soltando-lhe o rosto e recolhendo minhas mãos pra junto de mim, e tomo a esquerda até as escadas. Ainda consigo ouvir as portas do elevador se abrindo e o silêncio, antes de chegar no meu andar, palpitando a duzentos graus celsius.
Eu lembro a cidade, claro, mas isso não é importante. Podem inventar vocês, então. Uma cidade ao norte, bem dentro: longe do mar. Quente como uma febre. Desde que eu chegara, três noites antes, uma onda inusual de calor se deitara por cima da quentura habitual, tornando as horas mais densas, como se desse pra sentir as partículas de tudo vibrando mais intensamente, numa energia térmica a se entranhar até nas paredes. É curioso como o calor se infiltra na matéria. Eu já fora outras vezes ali, sempre a trabalho, mas não estava preparado praquele cozimento. Sem falar nas roupas: empapavam-se e grudavam assim que vestidas, mesmo no quarto refrigerado. O nome do hotel eu não lembro mesmo: podem inventar também. Era um hotel razoável, desses mal equilibrados entre a funcionalidade mais impessoal e alguns toques pitorescos pra fingir personalidade.
Naquela manhã eu acordara bem cedo, pra correr à beira-rio, até as ruínas da velha estação ferroviária. Na volta, como ainda tivesse tempo antes da primeira reunião, resolvi deixar a roupa social pra depois do café: tomei um banho gelado, vesti short e camiseta e desci ao salão onde era servido o bufê, no segundo andar.
As janelas do restaurante davam pro leste, e o sol, zarabatana, já pontilhava o interior do ambiente em raios quase paralelos ao chão, enquanto queimava imenso ao longe, pr’além das bordas da cidade, indiferente. Ou talvez receoso de lhe incendiar de vez, se chegasse mais perto.
Eu transpirava, claro, até nos pés: o corpo inteiro feito ainda fervilhando da corrida, o breve alívio do banho já evaporado. Enchi um copo de suco, outro de água e os levei à mesa. Após, servi-me de frutas: uma fatia gorda de melancia, uma banana, metade de um mamão e algumas uvas. Gosto de variedade.
Sentei-me a um canto, protegido do sol (até onde podemos nos iludir a esse respeito). Dois garçons, em ridículas gravatas-borboletas, revezavam-se limpando as mesas e repondo os itens do café, lentamente — o movimento de hóspedes ainda fraco. Acho que reparei o olhar dele, mas não tenho certeza: inquieto (?), como duvizagueando entre buscar e fugir. Voltei ao bufê: um pão, duas bolinhas de manteiga que já começavam a derreter e duas largas colheradas de ovos mexidos, meio esbranquiçados do leite que muitos hotéis jogam na mistura. Deixei o prato à mesa, peguei uma xícara e me dirigi à cafeteira, enorme, de metal cromado — feito um mudo homem de lata daquela Oz equatorial.
Dessa vez, lembro bem: ele me olhava. Com ar de emburrado, contrafeito, mas também… Alguma outra coisa. Num repente, me senti como em alto-relevo na paisagem do salão: suado, de regata e havaianas, em meio a funcionários e hóspedes em calças, camisas, sapatos, firulas. Algo escorria pelo meu canto esquerdo da boca: sumo de fruta abocanhada em gula. Passei a língua sobre a pele, até onde alcançava. Talvez fosse apenas isso: aquele sujeito sem um fio de cabelo fora do lugar, a barba feita, unhas curtas e limpas, eu conseguira reparar — eu lembro — recriminando minhas roupas, ou minha cara suja de comida feito a de um bicho. Provavelmente ambos. Fanáticos por ordem e pureza existem aos quaquizilhões, vigias atentos da vida alheia. Enchi minha xícara e rumei de volta.
Mas após o primeiro gole do café — fraco, pro meu gosto — antes da manteiga no pão ou de provar os ovos leitosos, eu o olhei. Não havia muito como evitá-lo, exceto por esforço intencional: um na direção do outro, e no entre, apenas três mesas vazias. Então de novo, agora sem dúvida: o olhar inquieto, algo recriminador, mas também… Alguma outra coisa. Eu me intrigava. Retribuí o enquadro, inclinando um quase nada a cabeça, leve desafio sem palavras: Que é? Pareceu se enraivecer um pouco, afrontado, antes de desviar os olhos pro celular pousado em cima da mesa e começar a tocar na tela com um dedo só, da mão direita, o outro braço pendendo reto, estendido até fora da minha visão. Ocupei-me de mim: tirei o miolo do pão, passei manteiga e recheei com os ovos. Comi com as mãos, lambuzando-me, deixando que a gordura pingasse no prato, lambendo os dedos: despeitado.
Satisfeito, me ergui pra última rodada, mirando a bandeja redonda onde um bolo alto de chocolate me dizia, em língua de calda, que sobremesa não tem hora. Bem enquanto eu passava, levantou-me a cabeça, e ora bodegas, lancei-lhe então um olhar como quem indaga: E agora, o quê? Percorreu meu rosto e desceu até os pés, globos salientes encimando um maxilar rígido, narinas expandidas, a face como um empurrão, mas, por trás, infiltrado feito o calor sôfrego: algum sinal cifrado, daqueles tão sutis que já são difíceis de perceber no momento, que dirá lembrar — e aqui, portanto, não invento, como prometido, mas conjecturo: talvez um meio sorriso esboçado na boca contraída, ou o peito se expandindo numa inspiração mais extensa, qualquer coisa meio mole entranhada na rocha, querendo intumescer. Sutil sim, mas (ainda) assim: um desabrocho. O importante é: eu percebi. Especialmente quando, a meio caminho entre minha cabeça e meus pés, diminuiu o ritmo da revista ao passar pelo short. Eu lembro — não digo nos mínimos detalhes, mas em detalhes suficientes.
No caminho de volta à mesa, espiei eu mesmo pra baixo, disfarçando o autoexame com a fatia de bolo equilibrada no prato. Sem cueca eu sabia. O que só então dei-me conta: notava-se. Mas isso em si, que tem de mais? Não era apenas afronta, então.
Ao sentar, ainda me encarava, a mão direita sobre a toalha, o braço esquerdo novamente escondido atrás da mesa (eu teria visto uma aliança, antes?). Fiz que não era comigo, pondo minha atenção no bolo de chocolate e no resto de café na xícara. O salão se enchia rápido, agora, zumbindo. Quando me levantei pra ir embora, o homem não estava mais lá: na mesa com pratos e copos sujos que o garçom ainda não recolhera. Tanto fazia.
Cruzei as portas de vidro do restaurante e ao fim do corredor pude vê-lo: de frente pro elevador. Conforme eu me aproximava, notou-me, retomando a expressão de raiva represada. Antes mesmo que eu chegasse perto, propriamente, disparou:
— Você não tem vergonha? De andar assim pela área comum do hotel? Ninguém é obrigado!
Tive tempo de enviar aos músculos a ordem pra responder — perguntar Assim como?, porque obrigar o absurdo à clareza costuma ser um bom jeito de lidar com ele — mas sua língua foi mais rápida que a minha, dois tons mais exaltada:
— Isso é um desrespeito, porra! Olha, olha…
Parecia não saber como continuar a frase: deu um suspiro, deixando cair aquela alguma coisa além de contrariedade. Agora, eu sabia o que era, e a recolhi invisivelmente antes de se espatifar no chão, enquanto me achegava mais e mais.
Segurei-lhe o rosto entre as mãos e(u lembro?): meus olhos abertos enxergando os dele se fecharem, a respiração sincronizando-se; e quando seus braços totalmente relaxados, o corpo entregue, a língua veloz buscando a minha já sem nenhum receio ou resistência, ávida, querendo se entranhar feito mormaço vivo, é justo quando me afasto, soltando-lhe o rosto e recolhendo minhas mãos pra junto de mim, e tomo a esquerda até as escadas. Ainda consigo ouvir as portas do elevador se abrindo e o silêncio, antes de chegar no meu andar, palpitando a duzentos graus celsius.
Thássio Ferreira: poeta e ficcionista, autor dos livros (DES)NU(DO) (2016), Itinerários (2018 — obra vencedora do I Concurso Literário da Ed. UFPR) e agora (depois) (2019), todos de poesia; e Nunca estivemos no Kansas (2022), de contos. Escreve a coluna Alguma coisa em mim que eu não entendo, na Revista Vício Velho, e possui contos e poemas em publicações como Revista Brasileira (nº 94), da Academia Brasileira de Letras, Jornal Rascunho, Escamandro, Gueto, Ruído Manifesto, Mallarmargens, Germina, Revista Ponto (SESI-SP) e InComunidade (Portugal). Vencedor dos prêmios Off-Flip 2019 e Cidade de Manaus 2020, e finalista do Prêmio Sesc 2017, todos na categoria contos.
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