Dez pras dez, conto de Rafael Gallo
08 de fevereiro de 2022
por Rafael Gallo
por Rafael Gallo
Ele desaba no sofá, exausto. Fecha os olhos, mas falta tão pouco para o horário no qual terá de acordar, o horário no qual terá de se apresentar pronto, que a ansiedade o impede de adormecer por completo.
Depois de tanto revirar para um lado e para o outro, pendulando também entre o sono e a vigília, levanta-se incerto se conseguiu sequer ter dormido. Lembra-se de imagens estranhas há pouco; talvez sonhos – o que serviria como comprovação de ter caído no sono – mas talvez ilusões hipnagógicas, a meio caminho da saída do despertar. Ou mera embriaguez.
Vai à cozinha, pisa azulejos movediços. Apoia-se no batente da porta, acende a luz e olha para o relógio na parede. Os ponteiros alinhados, formando aquela única seta: agulha de uma bússola que aponta a noroeste. Sabe aonde essa indicação o leva, sempre o mesmo lugar, sempre faltando tão pouco para o momento de chegar lá. Ele esfrega os olhos diante do relógio na parede, quase descrente de estar de novo nessa marca, já a convocá-lo outra vez. Os dois ponteiros alinhados: dez pras dez.
Ainda que repita diariamente esse ciclo, ele é surpreendido pela urgência. Enfia os pés nos sapatos largados no chão, procura a chave sem encontrá-la, acaba deixando a porta aberta e sai às pressas. Atrasado, está sempre atrasado. Já na rua, seus olhos embaciados recebem o caleidoscópio das luzes da cidade. Precisa mandar fazer outros óculos, desde que as lentes do seu quebraram ficou nessa turvação. Talvez tenha chovido e o ar esteja úmido. Talvez não.
Conseguirá chegar a tempo? Se tivesse capacidade de avaliar probabilidades nesse momento, concluiria que não. Seus cálculos sempre resultando em negativo. Portanto, corre como qualquer pessoa que nada sabe e precisa chegar a algum ponto. Detrás do portão da casa pela qual passa, salta um cachorro berrando latidos. Um cachorro descomunal, negro como a noite, ainda mais voraz do que ela. Apavorado na calçada, ele corre ainda mais.
Finalmente, chega ao lugar de destino. Parece vazio: nenhuma luz acesa, as janelas todas fechadas, o portão da frente trancado com corrente e cadeado. Nenhum aviso, nenhuma placa de orientação. Ele se pergunta o que pode ter acontecido; tenta chamar por alguém, nenhuma resposta. Grita, mas sua voz desaparece em meio ao ruído da cidade.
Decide esperar, quem sabe alguém apareça para ajudá-lo. Alguma pessoa mais preparada ou informada, que apresente solução a essa ausência generalizada. Senta-se na sarjeta, de frente para o acesso trancado. Pergunta-se que horas serão, perdeu o relógio de pulso há tempos e nunca mais o encontrou. Guia-se apenas pelo da parede na cozinha de onde mora, impossível de ser ver nesse momento.
Olhando distraído ao redor, descobre a garrafa encostada ao meio-fio, próxima à boca de um bueiro. Estende o braço e a alcança. Ainda está pela metade. Bebe vários goles do líquido que o aquece por dentro, que conforta-o de alguma maneira da angústia. O sono, então, envolve-o feito canção de ninar destilada. Ele deita na calçada. Apaga.
Acorda um tempo depois, dessa vez dormiu por certo. O rosto marcado pelo apoio no braço, o braço meio paralisado pelo peso da cabeça. Esfrega os olhos, continuam ébrios, mas veem: nada mudou, tudo ainda vazio. Resolve voltar para casa. Amanhã tenta de novo; está embriagado agora, nem seria bom se apresentar em tal estado. E perdeu a noção das horas. Recolhe a garrafa do chão, ainda sobrou um pouco da bebida. Caminha sob a noite que parece mais clara agora, mesmo sem luar.
A porta de casa está aberta, isso facilita. Na sala, ele deixa a garrafa em cima da mesa. Vai para o quarto. Tenta proporcionar final mais digno a seu sono. Encosta a porta, as cortinas já estão fechadas. Adormece na cama.
Só o estômago o faz acordar e, afinal, levantar. Vai para a cozinha, abre o armário desatento. Há um pacote de bolachas aberto, ele come sem pressa. Estão murchas. Curioso para saber que horas são, olha para o relógio na parede. Inacreditável, como pode ter passado tão rápido? Dormiu demais, a seta aponta. Já são dez pras dez.
Precisa correr, ou vai perder a hora mais uma vez. Saca a garrafa deixada sobre a mesa, enfia os sapatos nos pés. Por sorte, ainda está com a roupa de sair, não a trocou antes de deitar. A chave continua perdida, ele sai e deixa a porta aberta. Na rua, as luzes se misturam, o cachorro salta da mesma casa no mesmo ataque voraz, ele corre com o mesmo medo.
Encontra o lugar à semelhança da vez anterior: fechado por corrente e cadeado, nenhuma luz acesa, nenhuma janela aberta. Ninguém por perto. Sua frustração quase o faz atirar a garrafa contra a parede, num rompante. Mas o abatimento seguinte, que costuma sobrepujar outras ações dele, leva-o a apenas abaixar os braços e sentar-se à sarjeta. Solta, a garrafa rola pelo asfalto até encostar-se ao meio-fio, próxima à boca de um bueiro.
Dessa vez, não vai ficar aqui à espera, é inútil. Pode voltar para casa e telefonar, tentar descobrir o que está errado. Deve haver alguém responsável onde o telefone há de tocar, qualquer pessoa que saiba informá-lo, dar instruções. Será que ainda tem o número?
Chega em casa, vai até o armário, as gavetas estavam abertas. Mas não encontra o papel onde anotara, algum dia, o telefone. Procura no quarto, no cômodo restante – que nem função nem nome mais tem – e nada. Talvez tenha deixado preso à porta da geladeira, caso necessitasse em alguma ocasião, como agora necessita. Vai à cozinha, acende a luz. Olha para o relógio na parede. Dez pras dez.
Nesse horário, é melhor nem ligar e ir direto para lá. Precisa correr, talvez chegue a tempo caso se apresse. Enfia os pés nos sapatos, procura as chaves e não encontra. Não pode mais esperar, precisa sair agora. Deixa a porta aberta, atravessa as ruas escuras, o cachorro ainda mais escuro salta aos urros, o medo a esfriá-lo por dentro enquanto caminha em desespero calado. Chega ao seu destino: sem acesso, sem funcionamento, sem ninguém. Furioso, sacode o portão, tenta derrubá-lo; puxa a corrente para arrebentá-la. Seus esforços são inúteis. Tomba ao chão, exaurido. Chama, chama, e ninguém atende.
Passa a mão pelo rosto, encontra lágrimas ou suor ou traços da chuva. Olha ao redor, descobre uma garrafa encostada ao meio-fio, próxima à boca de um bueiro. Está longe demais; queria beber, mas desiste. Enfia as mãos nos bolsos do casaco, talvez tenha outra coisa equivalente consigo. Encontra o papel. Deve ser o número de telefone que procurava, aproxima-o dos olhos. Não consegue ler, a grafia toda borrada, ou uma espécie de miopia potencializada. Desiste de tentar, precisa desistir.
Volta para casa, solta os sapatos no chão. A fadiga toma conta de seu corpo. Mais do que isso, apaga o que poderia ser chamado de seu espírito. Não tem forças para mais nada. Precisa dormir, ao menos, descansar um pouco de tudo isso. Sente-se péssimo, desorientado. E o que mais pode fazer, quando tudo passa mas a nada se chega?
Ele desaba no sofá, exausto. Fecha os olhos, mas falta tão pouco para o horário no qual terá de acordar, o horário no qual terá de se apresentar pronto, que a ansiedade o impede de adormecer por completo.
Depois de tanto revirar para um lado e para o outro, pendulando também entre o sono e a vigília, levanta-se incerto se conseguiu sequer ter dormido. Lembra-se de imagens estranhas há pouco; talvez sonhos – o que serviria como comprovação de ter caído no sono – mas talvez ilusões hipnagógicas, a meio caminho da saída do despertar. Ou mera embriaguez.
Vai à cozinha, pisa azulejos movediços. Apoia-se no batente da porta, acende a luz e olha para o relógio na parede. Os ponteiros alinhados, formando aquela única seta: agulha de uma bússola que aponta a noroeste. Sabe aonde essa indicação o leva, sempre o mesmo lugar, sempre faltando tão pouco para o momento de chegar lá. Ele esfrega os olhos diante do relógio na parede, quase descrente de estar de novo nessa marca, já a convocá-lo outra vez. Os dois ponteiros alinhados: dez pras dez.
Ainda que repita diariamente esse ciclo, ele é surpreendido pela urgência. Enfia os pés nos sapatos largados no chão, procura a chave sem encontrá-la, acaba deixando a porta aberta e sai às pressas. Atrasado, está sempre atrasado. Já na rua, seus olhos embaciados recebem o caleidoscópio das luzes da cidade. Precisa mandar fazer outros óculos, desde que as lentes do seu quebraram ficou nessa turvação. Talvez tenha chovido e o ar esteja úmido. Talvez não.
Conseguirá chegar a tempo? Se tivesse capacidade de avaliar probabilidades nesse momento, concluiria que não. Seus cálculos sempre resultando em negativo. Portanto, corre como qualquer pessoa que nada sabe e precisa chegar a algum ponto. Detrás do portão da casa pela qual passa, salta um cachorro berrando latidos. Um cachorro descomunal, negro como a noite, ainda mais voraz do que ela. Apavorado na calçada, ele corre ainda mais.
Finalmente, chega ao lugar de destino. Parece vazio: nenhuma luz acesa, as janelas todas fechadas, o portão da frente trancado com corrente e cadeado. Nenhum aviso, nenhuma placa de orientação. Ele se pergunta o que pode ter acontecido; tenta chamar por alguém, nenhuma resposta. Grita, mas sua voz desaparece em meio ao ruído da cidade.
Decide esperar, quem sabe alguém apareça para ajudá-lo. Alguma pessoa mais preparada ou informada, que apresente solução a essa ausência generalizada. Senta-se na sarjeta, de frente para o acesso trancado. Pergunta-se que horas serão, perdeu o relógio de pulso há tempos e nunca mais o encontrou. Guia-se apenas pelo da parede na cozinha de onde mora, impossível de ser ver nesse momento.
Olhando distraído ao redor, descobre a garrafa encostada ao meio-fio, próxima à boca de um bueiro. Estende o braço e a alcança. Ainda está pela metade. Bebe vários goles do líquido que o aquece por dentro, que conforta-o de alguma maneira da angústia. O sono, então, envolve-o feito canção de ninar destilada. Ele deita na calçada. Apaga.
Acorda um tempo depois, dessa vez dormiu por certo. O rosto marcado pelo apoio no braço, o braço meio paralisado pelo peso da cabeça. Esfrega os olhos, continuam ébrios, mas veem: nada mudou, tudo ainda vazio. Resolve voltar para casa. Amanhã tenta de novo; está embriagado agora, nem seria bom se apresentar em tal estado. E perdeu a noção das horas. Recolhe a garrafa do chão, ainda sobrou um pouco da bebida. Caminha sob a noite que parece mais clara agora, mesmo sem luar.
A porta de casa está aberta, isso facilita. Na sala, ele deixa a garrafa em cima da mesa. Vai para o quarto. Tenta proporcionar final mais digno a seu sono. Encosta a porta, as cortinas já estão fechadas. Adormece na cama.
Só o estômago o faz acordar e, afinal, levantar. Vai para a cozinha, abre o armário desatento. Há um pacote de bolachas aberto, ele come sem pressa. Estão murchas. Curioso para saber que horas são, olha para o relógio na parede. Inacreditável, como pode ter passado tão rápido? Dormiu demais, a seta aponta. Já são dez pras dez.
Precisa correr, ou vai perder a hora mais uma vez. Saca a garrafa deixada sobre a mesa, enfia os sapatos nos pés. Por sorte, ainda está com a roupa de sair, não a trocou antes de deitar. A chave continua perdida, ele sai e deixa a porta aberta. Na rua, as luzes se misturam, o cachorro salta da mesma casa no mesmo ataque voraz, ele corre com o mesmo medo.
Encontra o lugar à semelhança da vez anterior: fechado por corrente e cadeado, nenhuma luz acesa, nenhuma janela aberta. Ninguém por perto. Sua frustração quase o faz atirar a garrafa contra a parede, num rompante. Mas o abatimento seguinte, que costuma sobrepujar outras ações dele, leva-o a apenas abaixar os braços e sentar-se à sarjeta. Solta, a garrafa rola pelo asfalto até encostar-se ao meio-fio, próxima à boca de um bueiro.
Dessa vez, não vai ficar aqui à espera, é inútil. Pode voltar para casa e telefonar, tentar descobrir o que está errado. Deve haver alguém responsável onde o telefone há de tocar, qualquer pessoa que saiba informá-lo, dar instruções. Será que ainda tem o número?
Chega em casa, vai até o armário, as gavetas estavam abertas. Mas não encontra o papel onde anotara, algum dia, o telefone. Procura no quarto, no cômodo restante – que nem função nem nome mais tem – e nada. Talvez tenha deixado preso à porta da geladeira, caso necessitasse em alguma ocasião, como agora necessita. Vai à cozinha, acende a luz. Olha para o relógio na parede. Dez pras dez.
Nesse horário, é melhor nem ligar e ir direto para lá. Precisa correr, talvez chegue a tempo caso se apresse. Enfia os pés nos sapatos, procura as chaves e não encontra. Não pode mais esperar, precisa sair agora. Deixa a porta aberta, atravessa as ruas escuras, o cachorro ainda mais escuro salta aos urros, o medo a esfriá-lo por dentro enquanto caminha em desespero calado. Chega ao seu destino: sem acesso, sem funcionamento, sem ninguém. Furioso, sacode o portão, tenta derrubá-lo; puxa a corrente para arrebentá-la. Seus esforços são inúteis. Tomba ao chão, exaurido. Chama, chama, e ninguém atende.
Passa a mão pelo rosto, encontra lágrimas ou suor ou traços da chuva. Olha ao redor, descobre uma garrafa encostada ao meio-fio, próxima à boca de um bueiro. Está longe demais; queria beber, mas desiste. Enfia as mãos nos bolsos do casaco, talvez tenha outra coisa equivalente consigo. Encontra o papel. Deve ser o número de telefone que procurava, aproxima-o dos olhos. Não consegue ler, a grafia toda borrada, ou uma espécie de miopia potencializada. Desiste de tentar, precisa desistir.
Volta para casa, solta os sapatos no chão. A fadiga toma conta de seu corpo. Mais do que isso, apaga o que poderia ser chamado de seu espírito. Não tem forças para mais nada. Precisa dormir, ao menos, descansar um pouco de tudo isso. Sente-se péssimo, desorientado. E o que mais pode fazer, quando tudo passa mas a nada se chega?
Ele desaba no sofá, exausto. Fecha os olhos, mas falta tão pouco para o horário no qual terá de acordar, o horário no qual terá de se apresentar pronto, que a ansiedade o impede de adormecer por completo.
Rafael Gallo nasceu em São Paulo em 1981. É autor de Rebentar (Record, 2015), romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2016, e de Réveillon e outros dias (Record, 2012), livro de contos vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2011/2012. Tem ainda diversos textos em antologias e coletâneas, incluindo publicações em países como França, Estados Unidos, Cuba, Equador e Moçambique.
|