Treze vezes Jô Diniz
6 de fevereiro de 2022
seleção José Couto
poemas Jô Diniz
seleção José Couto
poemas Jô Diniz
A escrita de Jô Diniz traz sempre elegância e delicadeza transcendentais, impregnada de amorosidade. A impressão que se tem ao lermos seus textos é que ela escreve sempre com os pés descalços em seixos, na terra, na água corrente, na grama úmida ou na areia macia. Com a alma despida dos sentidos, vestida apenas de sensações intimistas, sussurrando no ouvido do leitor perfumes raros e indeléveis percepções poéticas. Capta com suas luminosas palavras fragmentos de imperceptíveis instantes, das emoções, de cenas de filmes que guardamos na memória, dos trechos de canções que ouvimos e pensávamos esquecidas, do gosto de ver fotos antigas e recordar, dos cartões postais, dos bilhetes, das cartas, das felicidades clandestinas, da pulsante e transbordante vida, da intrincada e inesgotável trilha que seguimos alucinados. Dona de uma voz muito própria e com expressiva sensibilidade, seus poemas nos instigam a mergulharmos em suas (e porque não dizer também nossas) reflexivas inquietudes.
José Couto, poeta.
José Couto, poeta.
CRISE
Guarde as chamas do ontem, no coração.
Contemple pela última vez as cinzas áureas da sua memória,
dentro deste breu, hoje, no céu, junto a um réquiem.
Escreva na poeira da ruína: resisto.
Empilhe, erga uma muralha, um espinheiro de força e continue.
Não se esqueça, não se renda.
Não assista, ser retirada à força pelos cabelos, e amputada
essa sua veia de esperança que ainda insiste em pulsar.
Não engula seus antidepressivos em silêncio, cante.
Não negocie sua alma, não durma em cinzas no chão frio, indigente,
eternamente.
Transmute suas lágrimas de luto em luta.
E reencante-se.
REFUGIADOS
Quando foi que nos tornamos a pior espécie,
a matar em prece
em nome de um pai?
A separar em cores,
gêneros,
territórios
e valores de castas,
os tremores dos anjos,
que choram em coro?
E que nada podem
contra o inferno
que nos tornamos?
CIRCUM-NAVEGAÇÃO
Eu sugo o mundo blindado pelo vidro.
Beijo cercado, contra a placa de poliestireno.
Desço, subo, navego num retângulo raso.
Não encontro terra e não encontro porto.
E navegar o tempo todo enjoa qualquer marinheiro velho.
Por trás dessa lâmina, tem que ter o que seja tocável.
Um lugar pra eu sentir na pele,
vida de pão e tulipas.
E não, de metal e plástico.
NOTÍVAGA
Às vezes,
quando anoitece,
escrevo.
Porque para me ouvir,
só o papel,
e o breu
do céu.
POESIA
Poesia é o que se traz no peito,
quando as noites insistem em não dormir.
É quando a fome não é do prato.
É quando o cansaço é de não ir.
FEITIO
Feito relógio ao contrário,
que rompe corda de prata,
umbigo, entranhas.
Que escreve na carne o gosto do orgasmo,
que tatua o lamber do desgosto na alma
pela primeira vez.
Feito reza ao avesso, que desfaz karma,
desfaz despedida, desfaz morte.
Feito quebranto, que se espalha em tantos, tantos pedaços,
e que nunca, nunca mais se juntam.
Feito encanto repetido dia e noite, até a exaustão.
Feito feitiço, sem permissão.
Feito reza forte, e canção nove vezes entoada,
que se entrega em ondas,
ao encontro do que foi,
do que é,
e do que será.
Feito a travessia indecente da verdade,
e a saliva que escorre numa sintonia de afinidade.
O amor quer tudo.
Quer o céu e o inferno.
Quer o outro.
PERDI
Perdi no seu jogo, perdi.
Perdi aquela lembrança quase boa, guardada
em memória já amassada.
Perdi o rumo da saída, quando me perdi.
Perdi o tempo certo de errar com você.
Perdi, outra vez, a vez de desistir de você.
Me perdi e perdi você.
Você me perdeu antes, eu te perdi depois:
e quem perde por último, chora melhor.
AMOR SONHADOR
O amor, sonhador, quando despertou abandonou família, trabalho, cidade.
Ergueu uma ponte no ar, atravessou oceano, se mudou para um castelo.
Nem tomou o primeiro café da manhã, já saiu correndo sentido grande sertão veredas.
Atravessou lagoa, mata, mina, e distraído, ficou no meio da estrada sem gasolina.
O amor, poético, depois embarcou numa canoa furada e assumiu compromisso para sempre.
O compromisso durou dois almoços e a poesia foi substituída por remédio para enxaqueca.
Mas o amor, insistente, comprou uma passagem só de ida, partiu de foguete
e andou de um lado para o outro no mundo da lua, esperando uma chance.
Encontrou bom terreno, e com a sua bandeira fincada sob as estrelas, se aninhou entre os astros.
E quando já era só um resto da última grande fogueira, ainda acendeu uma última vela, e adormeceu em prece.
Amanhã, será notícia viral: “Amor sobrevive mais uma vez, e diz que continuará se arriscando.”
QUARTO AZUL
Aqueles olhos claros em tão escura cor do céu,
naquelas noites sedas, juntas,
tanto me atrevia, quando me buscavam pecados raros.
Tanto me convocavam, me levavam adormecida pela mão.
Que eu, entre as estrelas dela, desmanchei em encanto morno.
E como crianças, nadamos nos ecos das nossas brincadeiras,
nas risadas uma da outra, enquanto eu desabava junto com meu último argumento,
enquanto eu me entregava àqueles desenhos,
nos dedos dela, que me contornavam sussurros.
Ela tantos candelabros, em mim, acesos.
Minha razão ali, ajoelhada, todo o meu gelo, nela, derretendo,
enquanto eu me rendia aos poucos à minha última rebeldia romântica.
E ela me viu como nunca ninguém me viu antes, e me revelou santuários.
E sem me perguntar se podia, se devia, fui pura.
Na pele dela fui água, escorri profundezas.
Nas ruas dela dancei, descalça, sem medo de viver.
E na casa que ela inventou pra mim, morei feliz:
primeira noite, segundo dia, terceira vida, quarto azul.
ESSÊNCIA
De que matéria o artista é feito?
Quem vê o mundo desse mesmo jeito?
Quem gosta de andar em labirintos sem luz,
buracos escorregadios, nesgas escondidas,
ofegante, com cada vez menos oxigênio,
com as pernas exaustas do chão torto, sem caminho certo e seguro para seguir?
Sem líquido fresco para matar a sede em lugar sombrio, fechado, que lhe esgota a sanidade,
e a água das vísceras?
Quem vê as formas de Rodin em rochas toscas, pedras cobertas de musgos?
Quem reconhece o som das sonatas de Chopin em cristais disformes, gotas d’água de chuva escorrendo pelas curvas das grutas, folhas das árvores, pétalas das flores comuns em lugares sem importância e sem cuidado?
Quem vê tudo o que te passa despercebido o tempo todo?
Quem perde tempo com o que não é fácil de ler, fácil de lidar, fácil de entender?
Quem deu ao artista esse olho que busca o que está por trás da cortina,
que busca o que está na coxia, no avesso da cena?
E que não se contenta com o que as luzes dos holofotes insistem em fazer o seu olho engolir?
Ele tem fome das entranhas, da célula tímida, do que você esconde.
E do que nem você mesmo, depois de atravessar seus sete salões escuros, ouvindo somente o eco da sua própria voz, descascando cada camada do seu tempo, até a faixa de limite de segurança te impedir de prosseguir, conseguiu ver.
SANTO REIS
Chegava aquela gente
colorida,
com batuque no coração,
eu tremia toda.
Possuída de fitas,
paralisada,
não dizia nada.
Mas quanta coisa
pra dizer eu tinha...
Me leva, batuque!
Não pertenço ao silêncio!
PECADO
Haja
perdão,
para
os erros
que não
cometemos.
CLARA A MENTE
Clara a mente,
a moça,
num golpe, virou as cartas e sorriu.
Primeira lâmina, arrepio veio inteiro,
coração sagrado, perfeito sangramento,
vermelho imperando, fogo envolvendo anjos de guarda.
Segunda lâmina, nove taças caídas,
cereja de bolo aos seus pés,
coração apertado, marca de chama,
rastro do que não foi.
Terceira lâmina, banho de romã e flores brancas,
elo ancestral com almas sedentas, melodia de nuvem encantada,
céu aberto, rito de quebra para crenças perversas.
— Finalmente!
E deu uma risada gostosa, de bruxa.
Duas vezes a carta da morte? Não teve dúvida.
— Lá vem novo amor!
Guarde as chamas do ontem, no coração.
Contemple pela última vez as cinzas áureas da sua memória,
dentro deste breu, hoje, no céu, junto a um réquiem.
Escreva na poeira da ruína: resisto.
Empilhe, erga uma muralha, um espinheiro de força e continue.
Não se esqueça, não se renda.
Não assista, ser retirada à força pelos cabelos, e amputada
essa sua veia de esperança que ainda insiste em pulsar.
Não engula seus antidepressivos em silêncio, cante.
Não negocie sua alma, não durma em cinzas no chão frio, indigente,
eternamente.
Transmute suas lágrimas de luto em luta.
E reencante-se.
REFUGIADOS
Quando foi que nos tornamos a pior espécie,
a matar em prece
em nome de um pai?
A separar em cores,
gêneros,
territórios
e valores de castas,
os tremores dos anjos,
que choram em coro?
E que nada podem
contra o inferno
que nos tornamos?
CIRCUM-NAVEGAÇÃO
Eu sugo o mundo blindado pelo vidro.
Beijo cercado, contra a placa de poliestireno.
Desço, subo, navego num retângulo raso.
Não encontro terra e não encontro porto.
E navegar o tempo todo enjoa qualquer marinheiro velho.
Por trás dessa lâmina, tem que ter o que seja tocável.
Um lugar pra eu sentir na pele,
vida de pão e tulipas.
E não, de metal e plástico.
NOTÍVAGA
Às vezes,
quando anoitece,
escrevo.
Porque para me ouvir,
só o papel,
e o breu
do céu.
POESIA
Poesia é o que se traz no peito,
quando as noites insistem em não dormir.
É quando a fome não é do prato.
É quando o cansaço é de não ir.
FEITIO
Feito relógio ao contrário,
que rompe corda de prata,
umbigo, entranhas.
Que escreve na carne o gosto do orgasmo,
que tatua o lamber do desgosto na alma
pela primeira vez.
Feito reza ao avesso, que desfaz karma,
desfaz despedida, desfaz morte.
Feito quebranto, que se espalha em tantos, tantos pedaços,
e que nunca, nunca mais se juntam.
Feito encanto repetido dia e noite, até a exaustão.
Feito feitiço, sem permissão.
Feito reza forte, e canção nove vezes entoada,
que se entrega em ondas,
ao encontro do que foi,
do que é,
e do que será.
Feito a travessia indecente da verdade,
e a saliva que escorre numa sintonia de afinidade.
O amor quer tudo.
Quer o céu e o inferno.
Quer o outro.
PERDI
Perdi no seu jogo, perdi.
Perdi aquela lembrança quase boa, guardada
em memória já amassada.
Perdi o rumo da saída, quando me perdi.
Perdi o tempo certo de errar com você.
Perdi, outra vez, a vez de desistir de você.
Me perdi e perdi você.
Você me perdeu antes, eu te perdi depois:
e quem perde por último, chora melhor.
AMOR SONHADOR
O amor, sonhador, quando despertou abandonou família, trabalho, cidade.
Ergueu uma ponte no ar, atravessou oceano, se mudou para um castelo.
Nem tomou o primeiro café da manhã, já saiu correndo sentido grande sertão veredas.
Atravessou lagoa, mata, mina, e distraído, ficou no meio da estrada sem gasolina.
O amor, poético, depois embarcou numa canoa furada e assumiu compromisso para sempre.
O compromisso durou dois almoços e a poesia foi substituída por remédio para enxaqueca.
Mas o amor, insistente, comprou uma passagem só de ida, partiu de foguete
e andou de um lado para o outro no mundo da lua, esperando uma chance.
Encontrou bom terreno, e com a sua bandeira fincada sob as estrelas, se aninhou entre os astros.
E quando já era só um resto da última grande fogueira, ainda acendeu uma última vela, e adormeceu em prece.
Amanhã, será notícia viral: “Amor sobrevive mais uma vez, e diz que continuará se arriscando.”
QUARTO AZUL
Aqueles olhos claros em tão escura cor do céu,
naquelas noites sedas, juntas,
tanto me atrevia, quando me buscavam pecados raros.
Tanto me convocavam, me levavam adormecida pela mão.
Que eu, entre as estrelas dela, desmanchei em encanto morno.
E como crianças, nadamos nos ecos das nossas brincadeiras,
nas risadas uma da outra, enquanto eu desabava junto com meu último argumento,
enquanto eu me entregava àqueles desenhos,
nos dedos dela, que me contornavam sussurros.
Ela tantos candelabros, em mim, acesos.
Minha razão ali, ajoelhada, todo o meu gelo, nela, derretendo,
enquanto eu me rendia aos poucos à minha última rebeldia romântica.
E ela me viu como nunca ninguém me viu antes, e me revelou santuários.
E sem me perguntar se podia, se devia, fui pura.
Na pele dela fui água, escorri profundezas.
Nas ruas dela dancei, descalça, sem medo de viver.
E na casa que ela inventou pra mim, morei feliz:
primeira noite, segundo dia, terceira vida, quarto azul.
ESSÊNCIA
De que matéria o artista é feito?
Quem vê o mundo desse mesmo jeito?
Quem gosta de andar em labirintos sem luz,
buracos escorregadios, nesgas escondidas,
ofegante, com cada vez menos oxigênio,
com as pernas exaustas do chão torto, sem caminho certo e seguro para seguir?
Sem líquido fresco para matar a sede em lugar sombrio, fechado, que lhe esgota a sanidade,
e a água das vísceras?
Quem vê as formas de Rodin em rochas toscas, pedras cobertas de musgos?
Quem reconhece o som das sonatas de Chopin em cristais disformes, gotas d’água de chuva escorrendo pelas curvas das grutas, folhas das árvores, pétalas das flores comuns em lugares sem importância e sem cuidado?
Quem vê tudo o que te passa despercebido o tempo todo?
Quem perde tempo com o que não é fácil de ler, fácil de lidar, fácil de entender?
Quem deu ao artista esse olho que busca o que está por trás da cortina,
que busca o que está na coxia, no avesso da cena?
E que não se contenta com o que as luzes dos holofotes insistem em fazer o seu olho engolir?
Ele tem fome das entranhas, da célula tímida, do que você esconde.
E do que nem você mesmo, depois de atravessar seus sete salões escuros, ouvindo somente o eco da sua própria voz, descascando cada camada do seu tempo, até a faixa de limite de segurança te impedir de prosseguir, conseguiu ver.
SANTO REIS
Chegava aquela gente
colorida,
com batuque no coração,
eu tremia toda.
Possuída de fitas,
paralisada,
não dizia nada.
Mas quanta coisa
pra dizer eu tinha...
Me leva, batuque!
Não pertenço ao silêncio!
PECADO
Haja
perdão,
para
os erros
que não
cometemos.
CLARA A MENTE
Clara a mente,
a moça,
num golpe, virou as cartas e sorriu.
Primeira lâmina, arrepio veio inteiro,
coração sagrado, perfeito sangramento,
vermelho imperando, fogo envolvendo anjos de guarda.
Segunda lâmina, nove taças caídas,
cereja de bolo aos seus pés,
coração apertado, marca de chama,
rastro do que não foi.
Terceira lâmina, banho de romã e flores brancas,
elo ancestral com almas sedentas, melodia de nuvem encantada,
céu aberto, rito de quebra para crenças perversas.
— Finalmente!
E deu uma risada gostosa, de bruxa.
Duas vezes a carta da morte? Não teve dúvida.
— Lá vem novo amor!