A fome do chacal, um conto do livro
Panaceia parafernália
20 de janeiro de 2022
por Leo de Sá Fernandes
por Leo de Sá Fernandes
Estavam novamente com fome, o Chacal e Natália, quando ele contou para ela que havia um jeito de jantar naquela noite um bom prato de comida e ainda de quebra levar de sobremesa um tiramisú. “Um tiramisú”, Natália pensou, “nunca havia comido” (mas é uma hipótese: “o cardápio muda a cada dia”, dissera o Chacal) e soube naquele momento que possivelmente iria aceitar qualquer que fosse a proposta que ele lhe oferecesse porque ela olhava para a 23 de Maio do topo do Centro Cultural São Paulo sem qualquer perspectiva de comer aquela noite.
No fim da tarde, Natália fumou seu último cigarro, arranjado de um estranho na rua, um velho babão. Ela saiu com nojo do encontro com aquele homem, mas nas mãos dois cigarros: um para ela, um para o Chacal. Porque é assim que o amor é colocado à prova: quando a fome não nos move rumo a uma saída egoísta, quando a fome do outro que amamos é também nossa. A vontade de fumar, que é também um tipo de fome, já havia passado em Natália. Mas será que nele já? Teria ele já fumado algum cigarro naquele dia nefasto, de tédio e mormaço?
Quando se encontraram, com o mesmo sorriso de covas, ele acenou e respondeu que ainda não, o bic aceso já na mão direita, a primeira tragada: um alívio, e eles mais que se amaram dessa vez porque o amor é válido tanto na virtude quanto no vício.
O Chacal falava e Natália-olhos-atentos, ouvidos-abertos, e ele lhe explicava como fariam pra garantir o jantar daquela noite. Por um tiramisú, teriam que ir até a Liberdade atrás da clínica que ele sabia onde ficava, ela teria que confiar no Chacal, porque ele já havia feito isso antes, e tinha dado certo. “Você confia em mim?”, ele perguntou, e Natália respondeu prontamente que sim, ainda que tivesse dúvida, ainda que não soubesse ao certo quem ele era, nem porque ela insistia em segui-lo.
Porque, até agora, segui-lo havia dado somente nisso: nessa fome, essa fome que não passa, e que se acentua no topo do Centro Cultural São Paulo, as luzes da cidade diminuindo diante do calor intenso dessa tarde de fevereiro (ah! o mês de fevereiro!), responsável por acentuar o tédio e a preguiça, mas também os afetos mútuos que se proliferam no calor e na umidade, como afetos de mofo. O que fazer, Natália? Seguir esse homem que te ama e que te deixa com fome, mas que também te alimenta, ou voltar com o rabo entre as pernas para São Mateus, pra casa dos seus pais, para a novela das oito, o arroz com feijão, a carne moída refogada com pimentão verde, de novo, mãe? Não aguento mais essa comida! Tudo aquilo tinha um cheiro que invadia o corredor lateral da casa térrea, piso de cacos, parede de azulejo, carne moída e detergente, lavagens, as mãos da mãe, as mãos enrugadas da mãe, e a carne moída todos os dias, às vezes com batata, às vezes sem, às vezes a batata com salsicha, às vezes sem. Todos os dias: acordar, entrar naquela loja de bairro, coração-de-São-Mateus, sair. Sair, comprar uma blusinha, um esmalte novo, voltar. Voltar daquela loja e jantar com a família. Não tinham mesa na cozinha: sentavam-se todos no sofá, de tecido grosso, trançado, um tecido grosso e trançado de marrom e branco que de longe parecia cinza e de perto não parecia cor nenhuma. Era feio. Parcelado em uma dessas lojas marabrás da vida. Natália se servia, e se sentava: no colo, o prato transparente cor de âmbar, o arroz, o feijão, a carne moída, a batata, dia sim, dia não, e a novela. E do lado direito o pai. E do lado esquerdo a mãe. E do lado esquerdo da mãe, o irmão com a namorada grávida. Vivia resmungando, gritava com todo mundo, ninguém a suportava mais em casa, “essa menina é metida pra caralho, mãe”, o irmão reclamava. No dia em que ela e o pai, evangélico, saíram na mão, Natália pegou suas coisas e meteu o pé. Na fronteira de São Mateus com o resto do mundo, bateu a rasteirinha dizendo que naquele bairro não voltava.
“Pronta?”, o Chacal perguntou, e ela, voltando da lembrança: “Te sigo”.
Um tiramisú, pela primeira vez. Tiramisú, tiramisú, “Tira-meu-su-tiã!”, ela se divertiu enquanto pensou no quanto três meses ao lado do Chacal já haviam lhe rendido mais aventuras e comidas exóticas que uma vida toda anterior com a família. “Pelo nome, deve ser um doce japonês”. Parecia bom. Natália levantou-se, ajustou a meia arrastão e os dois saíram de mãos dadas do Centro Cultural, desceram as escadas, e lá fora a noite ganhava do dia.
Foram a pé até o largo da Liberdade, e algumas barraquinhas ainda vendiam tempurá e acarajé às seis da tarde, estranha tropicália alimentar, comida de rua sem critério, mas é só mesmo na Liberdade que o tempurá e o acarajé convivem lado a lado, em mais nenhum outro lugar do mundo. Seus olhos ainda pararam na bacia de óleo fervendo, e seus sentidos se aguçaram.
No primeiro dia em que a falta da grana de fato deu as caras depois de sair fugida de São Mateus pro centro da cidade, Natália viu-se sentada diante do mini-Extra da Praça Roosevelt por uma hora certinho, até tomar coragem de fazer o que era devido: roubar. Respirou fundo, levantou-se, entrou no mercadinho com o nariz em pé, bem blasé. Em menos de dois minutos, cruzou o mercado até o fundo e alcançou a baguete de calabresa. Pôs no bolso, saiu. Saiu, andou bem rápido, virou a esquerda. Alcançou a Rêgo Freitas e sacou a baguete sequestrada: mordeu sem dó, seu olhar cruzando o de uma travesti elegante que passava. Sentiu-se julgada pela selvageria com que mordia. Ela desceu mais um pouco a Rêgo Freitas, e continuou: mais uma mordida. E a baguete, falsamente recheada, era puro pão e uma ou duas iscas de calabresa moída. Depois, acostumou-se. Sacou de longe os bares do centro onde era possível dar o gato. Quando muito, de bom humor e bem disposta, entrava sorridente, pedia o que queria, e depois ia no banheiro. Ficava cinco minutos lavando o rosto, retocando a maquiagem (o único batom que tinha) e saía sem dar boa tarde. Nunca fora pega até então. Nesses dias, dormiu noites na casa de um ex, de uma amiga, numa marquise e nos fundos d’Os Satyros.
Foi na saída do Galleto’s da República que ela, distraída de tão acostumada, sentiu o Chacal pegar seu pulso e dizer: “a senhorita não pagou sua comanda”. Ela gelou, engoliu em seco. Fodeu, pensou, fodeu, durou tão pouco sua carreira de golpista da fome, pra onde iria, para onde a levariam? Sentiu a mão do Chacal apertando mais forte seu pulso, tentou sacudir, arrancar, não deu, então virou o rosto pra protestar, ia cuspir na cara dele, e de relance percebeu, ele era tão estranho quanto belo: um rosto de covas. O Chacal sorriu pra ela e disse: “Relaxa, eu também não”.
O Chacal estava nessa de freeganismo há algum tempo, e manjava as possibilidades do centro. Sabia dos lugares onde habitualmente deixavam os restos, almoçava como um lorde nas praças de alimentação do shopping Light e nas galerias da Praça Dom José Gaspar, por vezes até as batatas rústicas do Paribar ele filava, e também sabia que na Casa de Francisca eles serviam um belo jantar para os funcionários antes e depois dos shows, e ainda, de quebra, pela noite de trabalho, era possível ganhar uns cento e cinquenta reais.
Foi o Chacal que a ensinou o truque de mestre: o restaurante vegetariano da Alameda Nothmann, que não entregava nem comanda nem papelzinho, pois era preço único para todos os clientes. O primeiro encontro fora lá: almoçaram dignos, saudáveis, saíram de lá tomando um chazinho de gengibre abraçados, enquanto desciam as escadas discretamente.
Por isso ela nele confiava: fora ele quem lhe dera a maior prova de que é possível matar a fome sem ter que abrir mão da qualidade. O Chacal era um cavalheiro, um gentleman. Natália desconhecia seu passado, mas sacava de longe que ele não era dali, nem de lugar nenhum, muito menos de São Mateus, como ela. O Chacal era como o signo de Libra, mórbido e elegante, andava com passos calculados e era esguio e calado. Mesmo quando comiam juntos pra matar a fome, seja no vegetariano da Nothmann, seja nos botecos da Sé: ela devorava tudo com voracidade, e ele, por sua vez, comia lentamente, sempre de olhos fechados e com um leve sorriso nos lábios, cada gosto gerando uma nova máscara em seu rosto, tamanho o prazer que sentia em cada detalhe dos sabores. Antes de comer qualquer coisa, ele cheirava profundamente, cheirava com força, dizia que o sabor começa no cheiro.
Voltemos a avenida Liberdade para ver, de cima, como um pássaro lento, esses dois, esse casal, andando de mãos dadas, magros, e com fome. Como são magros e bonitos. Como são magros e famintos! O amor também exige coisas em troca. É como um Mefistófeles sedutor, que nos sacia o desejo sob uma condição eterna. Depois do primeiro almoço no vegetariano da Nothmann, Natália convidou-se a si mesma para conhecer onde ele morava. No começo, ele resistiu, mas Natália havia gostado dele, havia se sentido atraída. Não só: havia, entre a elegância melancólica dele e o cheiro de seu terno de brechó uma sensação de abrigo que ela precisava de maneira pragmática: um lugar para ficar, um lugar para estar, um corpo de outro pra repousar o seu próprio. E, de quebra, ele era bonito. Poderiam ainda transar, tendo um teto e um colchão só pra si. O Chacal contornou a situação, desconversou, se fez de doido, mas Natália era de Áries: implacável. Tanto que insistiu que ele a levou até a porta de um casarão antigo e decrépito no coração do Bixiga, de onde saiam panfletos de pizzaria empoeirados e um mato seco que havia tomado conta da construção. “É aqui”, ele disse, e completou “precisa pular o muro”. Entre excitada e temerosa, Nati pulou o muro do casarão, seguida por ele, e, por ele também guiada, foi andando no escuro até a entrada daquela construção que lhe causava medo e tesão. De repente, fora lançada ao centro de uma aventura no tempo e no espaço, visitando aquilo que parecia ter sido a casa de uma família grande, lustrosa, elegante e aristocrática. “Todos mortos”, pensou, ao imaginar como circulavam por aquela casa seus donos originais. Era tanto e tamanho o espanto, que a primeira noite ali passada nem gerou em seu coração as dúvidas que surgiriam depois, aos poucos: como o Chacal fora parar ali? Como ele morava ali, e com quem? Era um criminoso? Era um forasteiro?
O Chacal não tinha nada para oferecer. Fora a arquitetura imponente e descascada daquela casa, havia um colchonete furado no andar de cima, dois ternos de veludo (um ele vestia, o outro ele lavava no tanque). Água da torneira. Um copo de vidro lascado onde essa água era vertida. E só. Todos os dias ele levantava e se lançava rumo à caça, rumo à aventura da comida na cidade. Se ela quisesse, poderia aprender, “Estou disposto a te ensinar”, ele falou. Depois, ficaram em silêncio por mais de uma hora, sentados, até que ela tomou a primeira iniciativa. O almoço do vegetariano já sumira dentro dela: nada mais a preenchia, somente aquele vazio. Lançou os braços em seu pescoço, a boca na boca dele, e ele a repeliu de imediato. O vexame da recusa transformou-se em raiva: ela tornou a avançar e ele recuou. Magoada, Natália ensaiou um choro. Nessas horas, horas em que se arrependia de ter saído de casa sem nenhuma outra perspectiva, horas em que São Mateus não parecia um lugar assim tão longe, horas em que de nenhum amor de verdade ela conseguia lembrar, vinha o cheiro do pimentão e da carne moída, e o prato âmbar apoiado nos joelhos, e tudo que ela almejava para esta vida fora da casa dos pais era ilusão e sofrimento.
“Vem transar comigo, você quer, eu sei que quer, eu também quero, não tem nada pra comer, não tem nada pra fazer, me deixa transar com você”, e ele a empurrava, e ela avançava de novo, e nessa eles ficaram lutando, se empurrando, e as roupas foram sendo retiradas, e ele segurou Natália pelos dois punhos e olhou fundo nos olhos dela e disse: “A minha fome é de outra ordem, Natália...”. E Natália nem pensava, e só dizia que sim, eu topo, mas na verdade queria mesmo se lembrar de como era ter alguém por si por alguns momentos. Ele começou a cheirar ela pelo pescoço, cheirava ela com força em todos os cantos, e começou a salivar. Isolados os dois, famintos, em um casarão que caía aos pedaços, agora eram carnes e fome tão somente, bife a rolê no meio da cama, molho de salivas. No auge do que seria um gozo, algo do tipo, ele cravou os dentes na barriga dela e saiu sangue. A pele dela foi rompida em traços esparsos e circulares. Ela ficou puta e deu um soco na cara do Chacal que fez ele pular pra fora da cama de susto, e ficar descompensado no canto. Ela ficou num silêncio raivoso, olhando pra ele, que por fim ganiu por uns segundos e dormiu. No dia seguinte, um hematoma, e ao seu lado, o Chacal nu e faminto, estranho e encantador, que era só quem lhe restava. Dali em diante, todos os dias e noites de ambos seriam uma caçada: à luz do sol, pra matar a fome de si. À luz da lua, a fome do outro.
A medida em que se distanciavam das escadas da estação de metrô, e iam descendo, as mãos do Chacal apertaram as mãos de Natália com mais força que o habitual. Suas mãos suavam, o que era bastante incomum. Natália percebia o cheiro de seu nervoso de longe, e aquilo a intrigou: ele era seguro demais, magro demais, para suar. Desceram a Rua dos Estudantes e viraram em um beco acuado e eminentemente cinza sujo, cheio de pombas na rua. Ele parou por um instante e pediu desculpas a Natália por tê-la inserido nessa vida de privações, roubos e golpes pelo pão de cada dia. Ela sorriu e lhe respondeu que ele a salvara. Que sem ele, ela teria passado ainda mais fome do que passava todos os dias. Que teria ficado sozinha tentando roubar baguetes de calabresa no Mini-Extra da Praça Roosevelt, até que fosse pega por um guardinha e sabe Deus qual teria sido seu destino. E que não havia nada de mais importante na vida do que um amor, que ter um amor ao seu lado para dividir a fome era um privilégio de poucos. O Chacal se comoveu, abaixou-se ao lado dela, levantou a camiseta dela e lá estava na barriga: a marca dos dentes dele agora era uma leve mancha tênue na pele de Natália, que passados alguns meses ainda se fazia presente, tamanha a força da mordida. Beijou de leve a memória da agressão e se desculpou por aquilo. Natália não entendeu o gesto do Chacal, achou bonito, por um tempo, mas não quis admitir nem pra si mesma que achou um pouco estranho.
Seguiram pelo beco sem saída até o final, onde havia um prédio encardido com uma pesada porta de vidro escuro. O Chacal tocou o interfone, anunciou seu nome, e alguns segundos depois a porta foi aberta por um rapaz com traços orientais que usava um par de óculos escuros com lentes liláses, cabelo liso, jovem, misterioso. “Salve, China”, disse o Chacal. “Esta é a Natália”. O China sorriu e cumprimentou Natália com um beijo em sua mão. “Muito prazer”, sua voz tinha um tom tranquilo, “Seja bem vindo de volta, Chacal. É a primeira vez dela?”. O Chacal fez que sim com a cabeça. “Muito bem. Você conhece o protocolo”. O Chacal parecia saber. Natália entrou em seu encalço, como uma espécie de rastro.
Caminharam por um corredor escuro até o hall de um elevador, o China apertou o botão único, esperaram e entraram. O elevador: mal iluminado, fraco, as paredes de alumínio, Natália tremeu, “que porra de lugar é esse?”, pensou, e começou a se afligir, e tão logo ela abriu a boca para perguntar, o Chacal olhou pra ela como se pedisse que ela não falasse.
Subiram até o oitavo andar do prédio. As portas se abriram e ambos se viram dentro de uma espécie de ambulatório abandonado, algo que um dia já fora um hospital: um longo corredor fracamente iluminado por lâmpadas fluorescentes, um piso vinílico bege e verde claro encardido, portas brancas com janelas de vidro fosco, cadeiras caramelo de espera, grudadas em blocos de cinco, próximas às paredes e, à saída do elevador, um balcão de espera onde, supostamente, uma recepcionista deveria se encontrar. Mas não havia ninguém. Um saguão de hospital abandonado, encardido e mal iluminado.
Natália ainda tentava se acostumar com aquela visão, aquele filme-B japonês onde agora este casal faminto se encontrava, quando seus pensamentos foram interrompidos pela chegada de uma outra figura parecida com a do China, também oriental, jovem, de cabelo liso, mas dessa vez uma mulher, uma enfermeira, com ar simpático e um uniforme roxo. A enfermeira cumprimentou a ambos, sorridente, mas Natália não entendia sua língua. Sorriu de volta, e em seguida, a enfermeira entregou um tablet para o China, que começou as orientações. “Natália, o Chacal deve ter te explicado. Não? É simples, eu vou ser honesto com você: estamos testando um novo medicamento. Alguns chamariam de “droga”. Bom, eu devo concordar que belalú em excesso pode ser uma droga. Assim como oxycontin, morfina, ou até mesmo um anti-gripal, você não concorda? Açúcar é uma droga. Mas honestamente, estamos interessados em seu potencial de cura. E em ganhar dinheiro, claro”. Falava pausado, e sua honestidade ao falar era de uma delicadeza mórbida: sem ver os olhos do China direito por trás daquelas lentes, Natália se deixava levar por suas palavras. “Bem, por hora precisamos fazer isso, digamos, clandestinamente. Acontece que um dos efeitos colaterais da belalú é uma fome insaciável. Por isso parte dos testes envolvem coisas de comer. Entende? Acho que foi isso afinal que os trouxe aqui”, concluiu sorrindo, e estendeu o tablet para Natália. “No final, nós também oferecemos uma ajuda de custo. Você aceita participar?”. Natália considerou, olhou para o Chacal, e imaginou os dois juntos numa mesa de comidas à vontade - parecia o impossível, a imagem do paraíso - e quando o Chacal lhe assentiu, ela concordou e pressionou o polegar na superfície do tablet, que imediatamente leu sua digital.
Natália estava estranhamente mais tranquila, agora. É claro que a sensação de que iria experimentar uma substância desconhecida causava qualquer tipo de frisson. Mas de todo modo, saber que dali a pouco estariam ambos sentados em frente a uma mesa farta, gratuita, e poderiam comer prazerosamente sem ter a emergência de disfarçar o golpe que se seguiria, dava-lhe uma espécie de esperança. Estava gostando daquilo: o medo passara. Olhou de relance para o Chacal, esperando a cumplicidade de seu olhar. “Boa sorte”, ele balbuciou, antes de virar-se para trás e abandoná-la. A enfermeira nipônica enlaçou seu ombro, sorriu, e a conduziu para uma das portas do corredor.
Natália chegou em uma sala pequena, uma antessala na verdade, em cujo centro encontrava-se uma cadeira de dentista. A enfermeira ordenou delicadamente que ela se sentasse. Em seguida, atou seus braços e pernas à cadeira, sempre sorrindo, sempre docemente. Pediu que aguardasse mais um instante, até que outra enfermeira, com o mesmo figurino roxo surgiu no ambiente, carregando consigo uma maleta. Natália sentada, passivamente amarrada à cadeira, e uma enfermeira de cada lado: a recém chegada abre a maleta trazida consigo, de onde tira uma seringa, um frasco com um líquido roxo, um par de luvas descartáveis, álcool e algodão. O procedimento é rápido e sem muitas delongas: a picada no braço não dói, o algodão é protocolo porque nem sangue sai, de tão magra, os materiais são descartados no lixo hospitalar e Natália é imediatamente desamarrada. Então recebe ajuda para levantar-se e enquanto uma das enfermeiras a acompanha até a porta lateral da antessala, a outra abre a porta e indica com a cabeça que ela entre.
Ela chega numa sala escura, com uma breve luz lilás. Em uma das paredes, Natália podia distinguir a faixa de vidro escuro atrás da qual deveriam estar os observadores. Em outra, exatamente oposta à qual entrara, havia mais uma porta. O chão liso e escuro parecia o de uma academia de dança. Almofadas gigantes e aparentemente confortáveis lhe ofereciam uma sensação de bem estar, de completo bem estar, de plenitude, que aliás, parecia aos poucos se instaurar em seu corpo, cada vez mais atento às coisas ao seu redor, cada vez mais sensível, a sala escura parecia lhe oferecer uma espécie de sabor na boca, a luz lilás lhe conferia um cheiro de lavanda que lavava suas narinas, era tudo aparentemente tão saboroso, tão delicado, como uma pasta americana se derramando com lisura e desejo por sobre um pão de ló recheado, finura, as coisas macias, as almofadas, grandes esponjas de fritura cobertas por açúcar de confeiteiro, Natália teve certeza: eram recheadas de creme inglês daqueles dos sonhos das padarias. Sua língua foi inchando, ávida por sorver sabores, e sem que qualquer impulso pudesse ser contido, avançou para as almofadas na tentativa de arrancar-lhes algum gosto. A língua passando na superfície, tanta textura, meu Deus, quanta textura, e um sabor que rompia com a expectativa, um sabor seco, um sabor abafado de coisa sem gosto, sem graça, mudaria de ideia, então lambeu a parede, um sabor também seco e áspero como areia, uma explosão de sabores, e tudo parecia passível de ser dissolvido com saliva, tudo parecia se esfarelar como uma paçoca, e aos poucos aquilo começou a se tornar incômodo, aquela sensação de um prazer irrefreável começou a tomar conta de todo o seu corpo, ela já não conseguia mais sentir que tinha controle de nada, era uma total perda de controle, completamente entregue, cada vez mais e mais, e quando foi ver estava andando mais rápido, um riso nervoso se esboçava em sua boca que soltava um espuma levemente lilás. Natália começou a andar de um lado pro outro, sentia-se irritada, sentia uma vontade de se masturbar, então passou a se lamber, e a morder-se com força, começou a chorar de irritação porque sabia que iria se machucar, mas estava com tanta fome, tanta fome, e não era mais uma fome que vinha do seu estômago, era uma fome na qual ela se convertia, nada mais fazia sentido, andar, correr, olhar o sol, nada que não fosse uma existência dedicada a encontrar matérias e mastigá-las, destruí-las, dissolvê-las com o seu cuspe, fazer delas um grande bolo, uma grande massa úmida, e então degluti-las aos poucos, deixar que aquela matéria externa se tornasse agora sua própria matéria, parte de si, e imersa nesses pensamentos viu de longe a porta abrir-se e ser empurrado para dentro da sala uma espécie de rolo imenso, uma grande linguiça parecia ser, uma coisa que vibrava e parecia besuntada de um óleo cheiroso, defumado, e Natália foi se aproximando rastejando, mal conseguia parar em pé de tanta fome, frames de luz lilás passavam por seus olhos, ela desconfiava que sonhava, não sabia ao certo, até que sua mão pegou na coisa que fora empurrada rolando para dentro da sala, era macia, cheirosa, suculenta, tenra, possuía uma capa branca e lisa, ela não hesitou e cravou os dentes, puxou, logo a capa lisa rompeu-se e um suco saboroso de ferrugem espirrou em sua cara, ela sorveu, era denso como um molho barbecue ácido e uma carne vermelha revelou-se, ela gostou demais, e de repente sentiu que aquele lombo se movia para cima e para baixo, respirava, a comida estava viva, era bom demais pra ser verdade, Natália conseguia arrancar nacos cada vez mais grossos daquela carne gostosa que possuía recôncavos e densidades diferentes, partes mais gordurosas, cartilagens gostosas de chupar e sentir um sumo, ossos difíceis de combater com os dentes, pouca gordura nas extremidades, e depois de um longo enfrentamento com aquele material gastronômico, Natália sentiu-se finalmente preenchida, a primeira etapa da fome saciada, a carcaça carcomida daquele corpo tinha espasmos a sua frente enquanto ela se encostava a uma das paredes completamente coberta de sangue.
Quando a porta tornou a abrir-se, a luz que entrou pela fresta iluminou a peça de carne ao centro da sala e Natália pode identificar o rosto do Chacal sujo de sangue, de olhos abertos, ainda intacto, talvez a única parte que ela não havia devorado. Tomou ciência do que já sabia desde o início, mas que não resistira: sua fome maior era a dele, a fome do Chacal, de comê-lo.
Duas novas enfermeiras entraram pela porta para conduzi-la. Uma delas ajudou Natália a tirar as roupas ensanguentadas e entregou-lhe um roupão para que se vestisse. A outra, indicou a saída: lá fora, ela podia distinguir o China observando-a, um sorriso no rosto, tudo desfocado, a memória do Chacal sorrindo, “essa noite você vai comer tiramisú” tiramisú, ela pensava, tira-meu-sutiã: um pavê com bolachas, queijo mascarpone, o Chacal havia dito, e café, ela gostava da ideia, e em seguida a imagem do rosto de Chachal ensanguentado, e então ela entendeu que havia comido seu amante vivo, comido a carne dele no meio daquela loucura toda e, que tinha matado o Chacal com sua fome. “Natália, presta atenção, você tem só duas horas para comer o banquete que te preparamos”, o China agora era prático. “Talvez você se sinta saciada agora, baby, mas sempre haverá fome residual: esse é o pior efeito colateral da belalú. Enfim... Hoje temos esse doce italiano, que eu adoro: tiramisú. Você poderá comer a vontade”. E a sua frente, algumas enfermeiras de uniforme roxo, todas parecidas, lhe serviam alguns pratos sobre uma mesa.
Então tiramisú não era japonês, pensou. Tiramisú não era japonês na Liberdade, fome cadáver Chacal ausente neste mundo, nunca mais a companhia, sou eu, meu Deus, a responsável, cadê São Mateus longe daqui? Alguma coisa cindiu dentro dela, ela não queria mais tiramisú. Eu não quero mais tiramisú, pensou, depois disse em voz alta, eu quero comer o Chacal, pensou, e também em seguida disse em voz alta, eu tenho fome do Chacal, disse, me deixa comer ele mais, me deixa, me deixa arrastar a carcaça dele pro refeitório, não, negativo, uma das enfermeiras disse, você já mostrou do que é capaz, agora você precisa recobrar a consciência e nada melhor do que um bom doce pra te fazer voltar, tiramisú a vontade, open de tiramisú na noite da Liberdade, não, me deixa, eu quero comer o Chacal, eu quero mais, Natália, atenção, você não deixou nada além dos ossos e do rosto, eu quero mais, Natália, eu quero mais, eu quero mais, eu quero mais!, ela seguiu gritando enquanto o China a observava com um sorriso mudo, e uma horda de outras enfermeiras entrava para arrastá-la da sala e enfiar-lhe comida morta doces mortos tiramisú sem gosto na boca até que ela se calasse.
No fim da tarde, Natália fumou seu último cigarro, arranjado de um estranho na rua, um velho babão. Ela saiu com nojo do encontro com aquele homem, mas nas mãos dois cigarros: um para ela, um para o Chacal. Porque é assim que o amor é colocado à prova: quando a fome não nos move rumo a uma saída egoísta, quando a fome do outro que amamos é também nossa. A vontade de fumar, que é também um tipo de fome, já havia passado em Natália. Mas será que nele já? Teria ele já fumado algum cigarro naquele dia nefasto, de tédio e mormaço?
Quando se encontraram, com o mesmo sorriso de covas, ele acenou e respondeu que ainda não, o bic aceso já na mão direita, a primeira tragada: um alívio, e eles mais que se amaram dessa vez porque o amor é válido tanto na virtude quanto no vício.
O Chacal falava e Natália-olhos-atentos, ouvidos-abertos, e ele lhe explicava como fariam pra garantir o jantar daquela noite. Por um tiramisú, teriam que ir até a Liberdade atrás da clínica que ele sabia onde ficava, ela teria que confiar no Chacal, porque ele já havia feito isso antes, e tinha dado certo. “Você confia em mim?”, ele perguntou, e Natália respondeu prontamente que sim, ainda que tivesse dúvida, ainda que não soubesse ao certo quem ele era, nem porque ela insistia em segui-lo.
Porque, até agora, segui-lo havia dado somente nisso: nessa fome, essa fome que não passa, e que se acentua no topo do Centro Cultural São Paulo, as luzes da cidade diminuindo diante do calor intenso dessa tarde de fevereiro (ah! o mês de fevereiro!), responsável por acentuar o tédio e a preguiça, mas também os afetos mútuos que se proliferam no calor e na umidade, como afetos de mofo. O que fazer, Natália? Seguir esse homem que te ama e que te deixa com fome, mas que também te alimenta, ou voltar com o rabo entre as pernas para São Mateus, pra casa dos seus pais, para a novela das oito, o arroz com feijão, a carne moída refogada com pimentão verde, de novo, mãe? Não aguento mais essa comida! Tudo aquilo tinha um cheiro que invadia o corredor lateral da casa térrea, piso de cacos, parede de azulejo, carne moída e detergente, lavagens, as mãos da mãe, as mãos enrugadas da mãe, e a carne moída todos os dias, às vezes com batata, às vezes sem, às vezes a batata com salsicha, às vezes sem. Todos os dias: acordar, entrar naquela loja de bairro, coração-de-São-Mateus, sair. Sair, comprar uma blusinha, um esmalte novo, voltar. Voltar daquela loja e jantar com a família. Não tinham mesa na cozinha: sentavam-se todos no sofá, de tecido grosso, trançado, um tecido grosso e trançado de marrom e branco que de longe parecia cinza e de perto não parecia cor nenhuma. Era feio. Parcelado em uma dessas lojas marabrás da vida. Natália se servia, e se sentava: no colo, o prato transparente cor de âmbar, o arroz, o feijão, a carne moída, a batata, dia sim, dia não, e a novela. E do lado direito o pai. E do lado esquerdo a mãe. E do lado esquerdo da mãe, o irmão com a namorada grávida. Vivia resmungando, gritava com todo mundo, ninguém a suportava mais em casa, “essa menina é metida pra caralho, mãe”, o irmão reclamava. No dia em que ela e o pai, evangélico, saíram na mão, Natália pegou suas coisas e meteu o pé. Na fronteira de São Mateus com o resto do mundo, bateu a rasteirinha dizendo que naquele bairro não voltava.
“Pronta?”, o Chacal perguntou, e ela, voltando da lembrança: “Te sigo”.
Um tiramisú, pela primeira vez. Tiramisú, tiramisú, “Tira-meu-su-tiã!”, ela se divertiu enquanto pensou no quanto três meses ao lado do Chacal já haviam lhe rendido mais aventuras e comidas exóticas que uma vida toda anterior com a família. “Pelo nome, deve ser um doce japonês”. Parecia bom. Natália levantou-se, ajustou a meia arrastão e os dois saíram de mãos dadas do Centro Cultural, desceram as escadas, e lá fora a noite ganhava do dia.
Foram a pé até o largo da Liberdade, e algumas barraquinhas ainda vendiam tempurá e acarajé às seis da tarde, estranha tropicália alimentar, comida de rua sem critério, mas é só mesmo na Liberdade que o tempurá e o acarajé convivem lado a lado, em mais nenhum outro lugar do mundo. Seus olhos ainda pararam na bacia de óleo fervendo, e seus sentidos se aguçaram.
No primeiro dia em que a falta da grana de fato deu as caras depois de sair fugida de São Mateus pro centro da cidade, Natália viu-se sentada diante do mini-Extra da Praça Roosevelt por uma hora certinho, até tomar coragem de fazer o que era devido: roubar. Respirou fundo, levantou-se, entrou no mercadinho com o nariz em pé, bem blasé. Em menos de dois minutos, cruzou o mercado até o fundo e alcançou a baguete de calabresa. Pôs no bolso, saiu. Saiu, andou bem rápido, virou a esquerda. Alcançou a Rêgo Freitas e sacou a baguete sequestrada: mordeu sem dó, seu olhar cruzando o de uma travesti elegante que passava. Sentiu-se julgada pela selvageria com que mordia. Ela desceu mais um pouco a Rêgo Freitas, e continuou: mais uma mordida. E a baguete, falsamente recheada, era puro pão e uma ou duas iscas de calabresa moída. Depois, acostumou-se. Sacou de longe os bares do centro onde era possível dar o gato. Quando muito, de bom humor e bem disposta, entrava sorridente, pedia o que queria, e depois ia no banheiro. Ficava cinco minutos lavando o rosto, retocando a maquiagem (o único batom que tinha) e saía sem dar boa tarde. Nunca fora pega até então. Nesses dias, dormiu noites na casa de um ex, de uma amiga, numa marquise e nos fundos d’Os Satyros.
Foi na saída do Galleto’s da República que ela, distraída de tão acostumada, sentiu o Chacal pegar seu pulso e dizer: “a senhorita não pagou sua comanda”. Ela gelou, engoliu em seco. Fodeu, pensou, fodeu, durou tão pouco sua carreira de golpista da fome, pra onde iria, para onde a levariam? Sentiu a mão do Chacal apertando mais forte seu pulso, tentou sacudir, arrancar, não deu, então virou o rosto pra protestar, ia cuspir na cara dele, e de relance percebeu, ele era tão estranho quanto belo: um rosto de covas. O Chacal sorriu pra ela e disse: “Relaxa, eu também não”.
O Chacal estava nessa de freeganismo há algum tempo, e manjava as possibilidades do centro. Sabia dos lugares onde habitualmente deixavam os restos, almoçava como um lorde nas praças de alimentação do shopping Light e nas galerias da Praça Dom José Gaspar, por vezes até as batatas rústicas do Paribar ele filava, e também sabia que na Casa de Francisca eles serviam um belo jantar para os funcionários antes e depois dos shows, e ainda, de quebra, pela noite de trabalho, era possível ganhar uns cento e cinquenta reais.
Foi o Chacal que a ensinou o truque de mestre: o restaurante vegetariano da Alameda Nothmann, que não entregava nem comanda nem papelzinho, pois era preço único para todos os clientes. O primeiro encontro fora lá: almoçaram dignos, saudáveis, saíram de lá tomando um chazinho de gengibre abraçados, enquanto desciam as escadas discretamente.
Por isso ela nele confiava: fora ele quem lhe dera a maior prova de que é possível matar a fome sem ter que abrir mão da qualidade. O Chacal era um cavalheiro, um gentleman. Natália desconhecia seu passado, mas sacava de longe que ele não era dali, nem de lugar nenhum, muito menos de São Mateus, como ela. O Chacal era como o signo de Libra, mórbido e elegante, andava com passos calculados e era esguio e calado. Mesmo quando comiam juntos pra matar a fome, seja no vegetariano da Nothmann, seja nos botecos da Sé: ela devorava tudo com voracidade, e ele, por sua vez, comia lentamente, sempre de olhos fechados e com um leve sorriso nos lábios, cada gosto gerando uma nova máscara em seu rosto, tamanho o prazer que sentia em cada detalhe dos sabores. Antes de comer qualquer coisa, ele cheirava profundamente, cheirava com força, dizia que o sabor começa no cheiro.
Voltemos a avenida Liberdade para ver, de cima, como um pássaro lento, esses dois, esse casal, andando de mãos dadas, magros, e com fome. Como são magros e bonitos. Como são magros e famintos! O amor também exige coisas em troca. É como um Mefistófeles sedutor, que nos sacia o desejo sob uma condição eterna. Depois do primeiro almoço no vegetariano da Nothmann, Natália convidou-se a si mesma para conhecer onde ele morava. No começo, ele resistiu, mas Natália havia gostado dele, havia se sentido atraída. Não só: havia, entre a elegância melancólica dele e o cheiro de seu terno de brechó uma sensação de abrigo que ela precisava de maneira pragmática: um lugar para ficar, um lugar para estar, um corpo de outro pra repousar o seu próprio. E, de quebra, ele era bonito. Poderiam ainda transar, tendo um teto e um colchão só pra si. O Chacal contornou a situação, desconversou, se fez de doido, mas Natália era de Áries: implacável. Tanto que insistiu que ele a levou até a porta de um casarão antigo e decrépito no coração do Bixiga, de onde saiam panfletos de pizzaria empoeirados e um mato seco que havia tomado conta da construção. “É aqui”, ele disse, e completou “precisa pular o muro”. Entre excitada e temerosa, Nati pulou o muro do casarão, seguida por ele, e, por ele também guiada, foi andando no escuro até a entrada daquela construção que lhe causava medo e tesão. De repente, fora lançada ao centro de uma aventura no tempo e no espaço, visitando aquilo que parecia ter sido a casa de uma família grande, lustrosa, elegante e aristocrática. “Todos mortos”, pensou, ao imaginar como circulavam por aquela casa seus donos originais. Era tanto e tamanho o espanto, que a primeira noite ali passada nem gerou em seu coração as dúvidas que surgiriam depois, aos poucos: como o Chacal fora parar ali? Como ele morava ali, e com quem? Era um criminoso? Era um forasteiro?
O Chacal não tinha nada para oferecer. Fora a arquitetura imponente e descascada daquela casa, havia um colchonete furado no andar de cima, dois ternos de veludo (um ele vestia, o outro ele lavava no tanque). Água da torneira. Um copo de vidro lascado onde essa água era vertida. E só. Todos os dias ele levantava e se lançava rumo à caça, rumo à aventura da comida na cidade. Se ela quisesse, poderia aprender, “Estou disposto a te ensinar”, ele falou. Depois, ficaram em silêncio por mais de uma hora, sentados, até que ela tomou a primeira iniciativa. O almoço do vegetariano já sumira dentro dela: nada mais a preenchia, somente aquele vazio. Lançou os braços em seu pescoço, a boca na boca dele, e ele a repeliu de imediato. O vexame da recusa transformou-se em raiva: ela tornou a avançar e ele recuou. Magoada, Natália ensaiou um choro. Nessas horas, horas em que se arrependia de ter saído de casa sem nenhuma outra perspectiva, horas em que São Mateus não parecia um lugar assim tão longe, horas em que de nenhum amor de verdade ela conseguia lembrar, vinha o cheiro do pimentão e da carne moída, e o prato âmbar apoiado nos joelhos, e tudo que ela almejava para esta vida fora da casa dos pais era ilusão e sofrimento.
“Vem transar comigo, você quer, eu sei que quer, eu também quero, não tem nada pra comer, não tem nada pra fazer, me deixa transar com você”, e ele a empurrava, e ela avançava de novo, e nessa eles ficaram lutando, se empurrando, e as roupas foram sendo retiradas, e ele segurou Natália pelos dois punhos e olhou fundo nos olhos dela e disse: “A minha fome é de outra ordem, Natália...”. E Natália nem pensava, e só dizia que sim, eu topo, mas na verdade queria mesmo se lembrar de como era ter alguém por si por alguns momentos. Ele começou a cheirar ela pelo pescoço, cheirava ela com força em todos os cantos, e começou a salivar. Isolados os dois, famintos, em um casarão que caía aos pedaços, agora eram carnes e fome tão somente, bife a rolê no meio da cama, molho de salivas. No auge do que seria um gozo, algo do tipo, ele cravou os dentes na barriga dela e saiu sangue. A pele dela foi rompida em traços esparsos e circulares. Ela ficou puta e deu um soco na cara do Chacal que fez ele pular pra fora da cama de susto, e ficar descompensado no canto. Ela ficou num silêncio raivoso, olhando pra ele, que por fim ganiu por uns segundos e dormiu. No dia seguinte, um hematoma, e ao seu lado, o Chacal nu e faminto, estranho e encantador, que era só quem lhe restava. Dali em diante, todos os dias e noites de ambos seriam uma caçada: à luz do sol, pra matar a fome de si. À luz da lua, a fome do outro.
A medida em que se distanciavam das escadas da estação de metrô, e iam descendo, as mãos do Chacal apertaram as mãos de Natália com mais força que o habitual. Suas mãos suavam, o que era bastante incomum. Natália percebia o cheiro de seu nervoso de longe, e aquilo a intrigou: ele era seguro demais, magro demais, para suar. Desceram a Rua dos Estudantes e viraram em um beco acuado e eminentemente cinza sujo, cheio de pombas na rua. Ele parou por um instante e pediu desculpas a Natália por tê-la inserido nessa vida de privações, roubos e golpes pelo pão de cada dia. Ela sorriu e lhe respondeu que ele a salvara. Que sem ele, ela teria passado ainda mais fome do que passava todos os dias. Que teria ficado sozinha tentando roubar baguetes de calabresa no Mini-Extra da Praça Roosevelt, até que fosse pega por um guardinha e sabe Deus qual teria sido seu destino. E que não havia nada de mais importante na vida do que um amor, que ter um amor ao seu lado para dividir a fome era um privilégio de poucos. O Chacal se comoveu, abaixou-se ao lado dela, levantou a camiseta dela e lá estava na barriga: a marca dos dentes dele agora era uma leve mancha tênue na pele de Natália, que passados alguns meses ainda se fazia presente, tamanha a força da mordida. Beijou de leve a memória da agressão e se desculpou por aquilo. Natália não entendeu o gesto do Chacal, achou bonito, por um tempo, mas não quis admitir nem pra si mesma que achou um pouco estranho.
Seguiram pelo beco sem saída até o final, onde havia um prédio encardido com uma pesada porta de vidro escuro. O Chacal tocou o interfone, anunciou seu nome, e alguns segundos depois a porta foi aberta por um rapaz com traços orientais que usava um par de óculos escuros com lentes liláses, cabelo liso, jovem, misterioso. “Salve, China”, disse o Chacal. “Esta é a Natália”. O China sorriu e cumprimentou Natália com um beijo em sua mão. “Muito prazer”, sua voz tinha um tom tranquilo, “Seja bem vindo de volta, Chacal. É a primeira vez dela?”. O Chacal fez que sim com a cabeça. “Muito bem. Você conhece o protocolo”. O Chacal parecia saber. Natália entrou em seu encalço, como uma espécie de rastro.
Caminharam por um corredor escuro até o hall de um elevador, o China apertou o botão único, esperaram e entraram. O elevador: mal iluminado, fraco, as paredes de alumínio, Natália tremeu, “que porra de lugar é esse?”, pensou, e começou a se afligir, e tão logo ela abriu a boca para perguntar, o Chacal olhou pra ela como se pedisse que ela não falasse.
Subiram até o oitavo andar do prédio. As portas se abriram e ambos se viram dentro de uma espécie de ambulatório abandonado, algo que um dia já fora um hospital: um longo corredor fracamente iluminado por lâmpadas fluorescentes, um piso vinílico bege e verde claro encardido, portas brancas com janelas de vidro fosco, cadeiras caramelo de espera, grudadas em blocos de cinco, próximas às paredes e, à saída do elevador, um balcão de espera onde, supostamente, uma recepcionista deveria se encontrar. Mas não havia ninguém. Um saguão de hospital abandonado, encardido e mal iluminado.
Natália ainda tentava se acostumar com aquela visão, aquele filme-B japonês onde agora este casal faminto se encontrava, quando seus pensamentos foram interrompidos pela chegada de uma outra figura parecida com a do China, também oriental, jovem, de cabelo liso, mas dessa vez uma mulher, uma enfermeira, com ar simpático e um uniforme roxo. A enfermeira cumprimentou a ambos, sorridente, mas Natália não entendia sua língua. Sorriu de volta, e em seguida, a enfermeira entregou um tablet para o China, que começou as orientações. “Natália, o Chacal deve ter te explicado. Não? É simples, eu vou ser honesto com você: estamos testando um novo medicamento. Alguns chamariam de “droga”. Bom, eu devo concordar que belalú em excesso pode ser uma droga. Assim como oxycontin, morfina, ou até mesmo um anti-gripal, você não concorda? Açúcar é uma droga. Mas honestamente, estamos interessados em seu potencial de cura. E em ganhar dinheiro, claro”. Falava pausado, e sua honestidade ao falar era de uma delicadeza mórbida: sem ver os olhos do China direito por trás daquelas lentes, Natália se deixava levar por suas palavras. “Bem, por hora precisamos fazer isso, digamos, clandestinamente. Acontece que um dos efeitos colaterais da belalú é uma fome insaciável. Por isso parte dos testes envolvem coisas de comer. Entende? Acho que foi isso afinal que os trouxe aqui”, concluiu sorrindo, e estendeu o tablet para Natália. “No final, nós também oferecemos uma ajuda de custo. Você aceita participar?”. Natália considerou, olhou para o Chacal, e imaginou os dois juntos numa mesa de comidas à vontade - parecia o impossível, a imagem do paraíso - e quando o Chacal lhe assentiu, ela concordou e pressionou o polegar na superfície do tablet, que imediatamente leu sua digital.
Natália estava estranhamente mais tranquila, agora. É claro que a sensação de que iria experimentar uma substância desconhecida causava qualquer tipo de frisson. Mas de todo modo, saber que dali a pouco estariam ambos sentados em frente a uma mesa farta, gratuita, e poderiam comer prazerosamente sem ter a emergência de disfarçar o golpe que se seguiria, dava-lhe uma espécie de esperança. Estava gostando daquilo: o medo passara. Olhou de relance para o Chacal, esperando a cumplicidade de seu olhar. “Boa sorte”, ele balbuciou, antes de virar-se para trás e abandoná-la. A enfermeira nipônica enlaçou seu ombro, sorriu, e a conduziu para uma das portas do corredor.
Natália chegou em uma sala pequena, uma antessala na verdade, em cujo centro encontrava-se uma cadeira de dentista. A enfermeira ordenou delicadamente que ela se sentasse. Em seguida, atou seus braços e pernas à cadeira, sempre sorrindo, sempre docemente. Pediu que aguardasse mais um instante, até que outra enfermeira, com o mesmo figurino roxo surgiu no ambiente, carregando consigo uma maleta. Natália sentada, passivamente amarrada à cadeira, e uma enfermeira de cada lado: a recém chegada abre a maleta trazida consigo, de onde tira uma seringa, um frasco com um líquido roxo, um par de luvas descartáveis, álcool e algodão. O procedimento é rápido e sem muitas delongas: a picada no braço não dói, o algodão é protocolo porque nem sangue sai, de tão magra, os materiais são descartados no lixo hospitalar e Natália é imediatamente desamarrada. Então recebe ajuda para levantar-se e enquanto uma das enfermeiras a acompanha até a porta lateral da antessala, a outra abre a porta e indica com a cabeça que ela entre.
Ela chega numa sala escura, com uma breve luz lilás. Em uma das paredes, Natália podia distinguir a faixa de vidro escuro atrás da qual deveriam estar os observadores. Em outra, exatamente oposta à qual entrara, havia mais uma porta. O chão liso e escuro parecia o de uma academia de dança. Almofadas gigantes e aparentemente confortáveis lhe ofereciam uma sensação de bem estar, de completo bem estar, de plenitude, que aliás, parecia aos poucos se instaurar em seu corpo, cada vez mais atento às coisas ao seu redor, cada vez mais sensível, a sala escura parecia lhe oferecer uma espécie de sabor na boca, a luz lilás lhe conferia um cheiro de lavanda que lavava suas narinas, era tudo aparentemente tão saboroso, tão delicado, como uma pasta americana se derramando com lisura e desejo por sobre um pão de ló recheado, finura, as coisas macias, as almofadas, grandes esponjas de fritura cobertas por açúcar de confeiteiro, Natália teve certeza: eram recheadas de creme inglês daqueles dos sonhos das padarias. Sua língua foi inchando, ávida por sorver sabores, e sem que qualquer impulso pudesse ser contido, avançou para as almofadas na tentativa de arrancar-lhes algum gosto. A língua passando na superfície, tanta textura, meu Deus, quanta textura, e um sabor que rompia com a expectativa, um sabor seco, um sabor abafado de coisa sem gosto, sem graça, mudaria de ideia, então lambeu a parede, um sabor também seco e áspero como areia, uma explosão de sabores, e tudo parecia passível de ser dissolvido com saliva, tudo parecia se esfarelar como uma paçoca, e aos poucos aquilo começou a se tornar incômodo, aquela sensação de um prazer irrefreável começou a tomar conta de todo o seu corpo, ela já não conseguia mais sentir que tinha controle de nada, era uma total perda de controle, completamente entregue, cada vez mais e mais, e quando foi ver estava andando mais rápido, um riso nervoso se esboçava em sua boca que soltava um espuma levemente lilás. Natália começou a andar de um lado pro outro, sentia-se irritada, sentia uma vontade de se masturbar, então passou a se lamber, e a morder-se com força, começou a chorar de irritação porque sabia que iria se machucar, mas estava com tanta fome, tanta fome, e não era mais uma fome que vinha do seu estômago, era uma fome na qual ela se convertia, nada mais fazia sentido, andar, correr, olhar o sol, nada que não fosse uma existência dedicada a encontrar matérias e mastigá-las, destruí-las, dissolvê-las com o seu cuspe, fazer delas um grande bolo, uma grande massa úmida, e então degluti-las aos poucos, deixar que aquela matéria externa se tornasse agora sua própria matéria, parte de si, e imersa nesses pensamentos viu de longe a porta abrir-se e ser empurrado para dentro da sala uma espécie de rolo imenso, uma grande linguiça parecia ser, uma coisa que vibrava e parecia besuntada de um óleo cheiroso, defumado, e Natália foi se aproximando rastejando, mal conseguia parar em pé de tanta fome, frames de luz lilás passavam por seus olhos, ela desconfiava que sonhava, não sabia ao certo, até que sua mão pegou na coisa que fora empurrada rolando para dentro da sala, era macia, cheirosa, suculenta, tenra, possuía uma capa branca e lisa, ela não hesitou e cravou os dentes, puxou, logo a capa lisa rompeu-se e um suco saboroso de ferrugem espirrou em sua cara, ela sorveu, era denso como um molho barbecue ácido e uma carne vermelha revelou-se, ela gostou demais, e de repente sentiu que aquele lombo se movia para cima e para baixo, respirava, a comida estava viva, era bom demais pra ser verdade, Natália conseguia arrancar nacos cada vez mais grossos daquela carne gostosa que possuía recôncavos e densidades diferentes, partes mais gordurosas, cartilagens gostosas de chupar e sentir um sumo, ossos difíceis de combater com os dentes, pouca gordura nas extremidades, e depois de um longo enfrentamento com aquele material gastronômico, Natália sentiu-se finalmente preenchida, a primeira etapa da fome saciada, a carcaça carcomida daquele corpo tinha espasmos a sua frente enquanto ela se encostava a uma das paredes completamente coberta de sangue.
Quando a porta tornou a abrir-se, a luz que entrou pela fresta iluminou a peça de carne ao centro da sala e Natália pode identificar o rosto do Chacal sujo de sangue, de olhos abertos, ainda intacto, talvez a única parte que ela não havia devorado. Tomou ciência do que já sabia desde o início, mas que não resistira: sua fome maior era a dele, a fome do Chacal, de comê-lo.
Duas novas enfermeiras entraram pela porta para conduzi-la. Uma delas ajudou Natália a tirar as roupas ensanguentadas e entregou-lhe um roupão para que se vestisse. A outra, indicou a saída: lá fora, ela podia distinguir o China observando-a, um sorriso no rosto, tudo desfocado, a memória do Chacal sorrindo, “essa noite você vai comer tiramisú” tiramisú, ela pensava, tira-meu-sutiã: um pavê com bolachas, queijo mascarpone, o Chacal havia dito, e café, ela gostava da ideia, e em seguida a imagem do rosto de Chachal ensanguentado, e então ela entendeu que havia comido seu amante vivo, comido a carne dele no meio daquela loucura toda e, que tinha matado o Chacal com sua fome. “Natália, presta atenção, você tem só duas horas para comer o banquete que te preparamos”, o China agora era prático. “Talvez você se sinta saciada agora, baby, mas sempre haverá fome residual: esse é o pior efeito colateral da belalú. Enfim... Hoje temos esse doce italiano, que eu adoro: tiramisú. Você poderá comer a vontade”. E a sua frente, algumas enfermeiras de uniforme roxo, todas parecidas, lhe serviam alguns pratos sobre uma mesa.
Então tiramisú não era japonês, pensou. Tiramisú não era japonês na Liberdade, fome cadáver Chacal ausente neste mundo, nunca mais a companhia, sou eu, meu Deus, a responsável, cadê São Mateus longe daqui? Alguma coisa cindiu dentro dela, ela não queria mais tiramisú. Eu não quero mais tiramisú, pensou, depois disse em voz alta, eu quero comer o Chacal, pensou, e também em seguida disse em voz alta, eu tenho fome do Chacal, disse, me deixa comer ele mais, me deixa, me deixa arrastar a carcaça dele pro refeitório, não, negativo, uma das enfermeiras disse, você já mostrou do que é capaz, agora você precisa recobrar a consciência e nada melhor do que um bom doce pra te fazer voltar, tiramisú a vontade, open de tiramisú na noite da Liberdade, não, me deixa, eu quero comer o Chacal, eu quero mais, Natália, atenção, você não deixou nada além dos ossos e do rosto, eu quero mais, Natália, eu quero mais, eu quero mais, eu quero mais!, ela seguiu gritando enquanto o China a observava com um sorriso mudo, e uma horda de outras enfermeiras entrava para arrastá-la da sala e enfiar-lhe comida morta doces mortos tiramisú sem gosto na boca até que ela se calasse.
Da fronteira do Brasil, com o Paraguai e a Argentina, até o coração da Cracolândia; da concreta quebrada paulistana ao território onírico dos sonhos lúcidos; no asfalto e na sala de estar - a belalú esteve em todos os círculos. Misto de alucinógeno recreativo e elixir ancestral, em Panaceia parafernália acompanhamos os diferentes olhares sobre esta droga misteriosa que fez a cabeça de muitos na última década, mas sobre a qual pouco se fala ou se sabe. Os onze contos-reportagem que compõe este livro formam um panorama épico, narrando o uso que seus personagens fazem dessa substância, nos mais diversos contextos, do sagrado ao profano, evidenciando os anseios e as angústias de uma geração pressionada entre o dever e o delírio.
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Leo de Sá Fernandes é jornalista, dramaturgo e ator, formado pela Escola de Comunicações e Artes da USP e pela SP Escola de Teatro. Mora e trabalha em São Paulo, cidade onde nasceu e que alimenta muitas de suas criações literárias. No teatro, é autor de O Estado contra George em Alcolu e As colônias, publicadas pela Editora Efêmera, além de O devir animal, agraciado com o Prêmio Jovem Dramaturgo da Escola SESC do Rio de Janeiro. No audiovisual, é um dos autores da série Boto, produzida pela Artrupe Produções Artísticas e exibida pela TV Cultura. Também é autor do livro de poesia Murro em ponta de faca, publicado pela Editora Primata. Escreve regularmente para o site Prosa do Observatório.
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