Poemas & Poetas indeléveis de 2021:
Lourença Lou
30 de dezembro de 2021
seleção de José Couto
por Lourença Lou
seleção de José Couto
por Lourença Lou
BANALIDADES
Enquanto no campo
Fogo invade paisagem
Em minha cama
Arde uma centena de sóis
Da janela vejo evaporar pedras
Ponto de virada das sombras
Andar pulado dos gatos
- vadios como eu queria me sentir
Bando de maritacas
Espanta a inércia
Que me prende aos trezentos fios
Meu corpo soçobra
À beira da desesperança
A palavra toma forma estranha
Em minha vontade de alcançá-la
- quase uma espada
De gravura encomendada
Sobre meu coração uma prancha de surf
Um piano
Uns olhos felinos me comendo
Aquele amor de verão
- recordações
Hoje adoraria amar um argentino
Talvez um russo
Aquele nordestino paulistano
Ou um poeta
A quem pouco importasse
A banalidade dos meus versos
Abraçar uma poesia
Que conhecesse a fome dos meus dias.
À HORA EM QUE AS SOMBRAS DESCEM
Em meio à obscenidade das cruzes
Um olho se arregala
Do azul nascem pássaros
A tangenciar voos partidos
Crianças saltam do sono
Para a mira de fuzis
Mulheres tecem toucas
Para bonecas sem cabeças
Tiros sangue sirenes
Escorrem entre dedos cruzados
Vida exaurida de desânimos
Soluça entre vazios e procissões
Aos ouvidos da noite
Resta o grasnar do corvo de poe.
ESFACELAMENTO
Terra de almas
A se mimetizarem
Semente de
Brotos aborto berdoegas
Dos jardins de cimento
Calçadas punks
A se acovardarem
Batidas na lata
Êxtase de olhos abertos
Ao som de heavy metal
Mares de poder
Descortinam
Códigos de esquinas
Lei da pedra e marmelada
Horizontes de fantasias
O país se esfacela
Seivas de sangue
Medo que soluça e morde
Não desarmam os nós.
MANCHETE QUE SE REPETE
Andava lenta atenta
Ao filho que viria
Aos envelhecidos passos
Amparados em seus braços
Andava e sorria
Atenta à finitude da tarde
À ausência de alma de pássaros
Atenta às cicatrizes dos dias
Não entendeu os poros
A se fecharem na pele
Redemoinhos no ventre
Cheiro de olhos escondidos
Arrepios
Desatenta ela caiu
Tiro tangente de fuzil
Escava peito filho planos
Mais uma manchete
Que se repete
:
Bala
Que de perdida
Apenas outras vidas
Que nela se perderam.
PARTIDA
Quando eu morrer
O que morrerá comigo?
Talvez
Um obstinado descaso pela vida
Certo estilo no uso do salto agulha
Esta pretensão de poesia
E uma inconfessa admiração
Por Adélia ter tido a coragem
De confrontar sua igreja
Com o surpreendente louvor ao cu
Levarei também
O que me é intrínseco
O prazer de me equilibrar
Sobre a linha que divide
O sacro e o profano
Os diários imaginários
Onde o desejo se torna pornô
A cara de nojo
Dos poetas de academia
A alegria
De ter transformado
Insônias em orgasmos
Sem dúvida levarei
Amores bem vividos
E uma consciência que me dirá:
Vá minha filha
Leva tuas cicatrizes
Tua falta de tatuagens
Tua versão de sexo felino
Tua meiguice em lamber feridas
E esta inveja indecente
De Drummond e seu amor natural
Vá e não se pergunte o que mais levará
Tu nunca se preocupou
Em arrumar a mala no dia anterior.
HÁ MUITO NÃO TE DESENHO ELEFANTES
Não tenho muito tempo
Depois de tambores e decibéis elevados
A noite já se anunciou silenciosa
Da janela vejo flores à beira da calçada
A enfeitar o inverno que se anuncia
Perenes
Como este querer que em mim é conteúdo
De plumas
Doçuras
Gratidão de tantos antigamentes
Há muito não te desenho elefantes
Que nos acheguem na distância de suas patas
Nem te dou de presente
Pérolas que invento
Assentadas em mil seios de conchas
Talvez devesse esperar junho
Seria quase nada
Fazer do seu dia
Apenas alusões a uma vida inteira poética
Que dribla geografias
A lançar redes em todos os meses do ano
E distribuir peixes
Multiplicados em estatísticas de carinho
Não tenho mais tempo
Talvez amanhã eu te dê uma braçada de flores que te mereçam.
FÔLEGOS DERRAMADOS
Andava lenta atenta
Ao filho que viria
Aos envelhecidos passos
Amparados em seus braços
Andava e sorria
Atenta à finitude da tarde
À ausência de alma de pássaros
Atenta às cicatrizes da vida
Não entendeu os poros
A se fecharem na pele
Redemoinho no ventre
Ouvidos nos pios de pardais
Cheiro de olhos escondidos
Arrepios
Desatenta ela caiu
Tiro tangente de fuzil
Desarmou peito filho planos
Agora grita na indignação
Dos indignados
Pelos fôlegos derramados.
PERDIDOS
Todos os sons fogem e nos deixam surdos às vidas lá de fora
O que o mundo diz não nos interessa
Não agora
Não no momento em que a coragem
Nos fecha neste quarto
O desejo
Esta ilha que nos separa do racional
Desperta-nos feras
Não há moralidade em nossa fome
Não há disciplina
Não há fronteiras
Na composição do nosso final dos tempos
Sua boca faz explodir minhas ansiedades
Lava com a língua o ventre à espera
Os dedos espalham ardências nos caminhos da madre
Desmancho-me em pornografias
Grito sussurro grito
Falo
Todos os lábios se abrem
Sedentos como terra à semente
Morremos
Não há em nós expectativa de vida além deste quarto alugado
A realidade nos vem trazida pelas trágicas sortes
Ainda hoje seremos novamente dois seres perdidos em ruídos
Fábricas de sonhos roubados à soma de nossas impossibilidades.
NAUFRÁGIO
Na busca dos sentidos lógica ética
Vozes anulam-se em jogo de retóricas
.
Escondo os escuros de minhas luzes
.
Águas rondam úteros olhos ouvidos
Apossam-se de pés e cabelos em fúria
.
Ruídos sangram verdes em meu corpo
.
Pés redesenham-se raízes em ruínas
Folhas dançam na força da enchente
.
Meus sonhos são mar de arquipélagos
.
Ilhas de desatino incitam tempestades
Explodem febres e combates de rua
.
Naufrago no ventre da desumanidade
NONSENSE
Talvez eu não saiba o que é lirismo
Ou talvez meu arco seja mais forte
Que o alvo e a rota da flecha
Sei que sonetos me dão sono
Se não estiverem picotando o amor
- ah! Dirão os críticos e
Os artistas da forma
- o que vomita
A louca que nunca soube
Além das suas bocas de fome?
Sei da vida que quase sempre
Cava buracos no senso comum
Sei também de caminhões insones
Desgovernados à beira do asfalto
Onde a miséria arma vitrines
Para que a vida continue
Entre as pernas das filhas
Ou na impotência
Da carne tenra de seus meninos
O crime não compensa
Mas compra a consciência das flechas.
Enquanto no campo
Fogo invade paisagem
Em minha cama
Arde uma centena de sóis
Da janela vejo evaporar pedras
Ponto de virada das sombras
Andar pulado dos gatos
- vadios como eu queria me sentir
Bando de maritacas
Espanta a inércia
Que me prende aos trezentos fios
Meu corpo soçobra
À beira da desesperança
A palavra toma forma estranha
Em minha vontade de alcançá-la
- quase uma espada
De gravura encomendada
Sobre meu coração uma prancha de surf
Um piano
Uns olhos felinos me comendo
Aquele amor de verão
- recordações
Hoje adoraria amar um argentino
Talvez um russo
Aquele nordestino paulistano
Ou um poeta
A quem pouco importasse
A banalidade dos meus versos
Abraçar uma poesia
Que conhecesse a fome dos meus dias.
À HORA EM QUE AS SOMBRAS DESCEM
Em meio à obscenidade das cruzes
Um olho se arregala
Do azul nascem pássaros
A tangenciar voos partidos
Crianças saltam do sono
Para a mira de fuzis
Mulheres tecem toucas
Para bonecas sem cabeças
Tiros sangue sirenes
Escorrem entre dedos cruzados
Vida exaurida de desânimos
Soluça entre vazios e procissões
Aos ouvidos da noite
Resta o grasnar do corvo de poe.
ESFACELAMENTO
Terra de almas
A se mimetizarem
Semente de
Brotos aborto berdoegas
Dos jardins de cimento
Calçadas punks
A se acovardarem
Batidas na lata
Êxtase de olhos abertos
Ao som de heavy metal
Mares de poder
Descortinam
Códigos de esquinas
Lei da pedra e marmelada
Horizontes de fantasias
O país se esfacela
Seivas de sangue
Medo que soluça e morde
Não desarmam os nós.
MANCHETE QUE SE REPETE
Andava lenta atenta
Ao filho que viria
Aos envelhecidos passos
Amparados em seus braços
Andava e sorria
Atenta à finitude da tarde
À ausência de alma de pássaros
Atenta às cicatrizes dos dias
Não entendeu os poros
A se fecharem na pele
Redemoinhos no ventre
Cheiro de olhos escondidos
Arrepios
Desatenta ela caiu
Tiro tangente de fuzil
Escava peito filho planos
Mais uma manchete
Que se repete
:
Bala
Que de perdida
Apenas outras vidas
Que nela se perderam.
PARTIDA
Quando eu morrer
O que morrerá comigo?
Talvez
Um obstinado descaso pela vida
Certo estilo no uso do salto agulha
Esta pretensão de poesia
E uma inconfessa admiração
Por Adélia ter tido a coragem
De confrontar sua igreja
Com o surpreendente louvor ao cu
Levarei também
O que me é intrínseco
O prazer de me equilibrar
Sobre a linha que divide
O sacro e o profano
Os diários imaginários
Onde o desejo se torna pornô
A cara de nojo
Dos poetas de academia
A alegria
De ter transformado
Insônias em orgasmos
Sem dúvida levarei
Amores bem vividos
E uma consciência que me dirá:
Vá minha filha
Leva tuas cicatrizes
Tua falta de tatuagens
Tua versão de sexo felino
Tua meiguice em lamber feridas
E esta inveja indecente
De Drummond e seu amor natural
Vá e não se pergunte o que mais levará
Tu nunca se preocupou
Em arrumar a mala no dia anterior.
HÁ MUITO NÃO TE DESENHO ELEFANTES
Não tenho muito tempo
Depois de tambores e decibéis elevados
A noite já se anunciou silenciosa
Da janela vejo flores à beira da calçada
A enfeitar o inverno que se anuncia
Perenes
Como este querer que em mim é conteúdo
De plumas
Doçuras
Gratidão de tantos antigamentes
Há muito não te desenho elefantes
Que nos acheguem na distância de suas patas
Nem te dou de presente
Pérolas que invento
Assentadas em mil seios de conchas
Talvez devesse esperar junho
Seria quase nada
Fazer do seu dia
Apenas alusões a uma vida inteira poética
Que dribla geografias
A lançar redes em todos os meses do ano
E distribuir peixes
Multiplicados em estatísticas de carinho
Não tenho mais tempo
Talvez amanhã eu te dê uma braçada de flores que te mereçam.
FÔLEGOS DERRAMADOS
Andava lenta atenta
Ao filho que viria
Aos envelhecidos passos
Amparados em seus braços
Andava e sorria
Atenta à finitude da tarde
À ausência de alma de pássaros
Atenta às cicatrizes da vida
Não entendeu os poros
A se fecharem na pele
Redemoinho no ventre
Ouvidos nos pios de pardais
Cheiro de olhos escondidos
Arrepios
Desatenta ela caiu
Tiro tangente de fuzil
Desarmou peito filho planos
Agora grita na indignação
Dos indignados
Pelos fôlegos derramados.
PERDIDOS
Todos os sons fogem e nos deixam surdos às vidas lá de fora
O que o mundo diz não nos interessa
Não agora
Não no momento em que a coragem
Nos fecha neste quarto
O desejo
Esta ilha que nos separa do racional
Desperta-nos feras
Não há moralidade em nossa fome
Não há disciplina
Não há fronteiras
Na composição do nosso final dos tempos
Sua boca faz explodir minhas ansiedades
Lava com a língua o ventre à espera
Os dedos espalham ardências nos caminhos da madre
Desmancho-me em pornografias
Grito sussurro grito
Falo
Todos os lábios se abrem
Sedentos como terra à semente
Morremos
Não há em nós expectativa de vida além deste quarto alugado
A realidade nos vem trazida pelas trágicas sortes
Ainda hoje seremos novamente dois seres perdidos em ruídos
Fábricas de sonhos roubados à soma de nossas impossibilidades.
NAUFRÁGIO
Na busca dos sentidos lógica ética
Vozes anulam-se em jogo de retóricas
.
Escondo os escuros de minhas luzes
.
Águas rondam úteros olhos ouvidos
Apossam-se de pés e cabelos em fúria
.
Ruídos sangram verdes em meu corpo
.
Pés redesenham-se raízes em ruínas
Folhas dançam na força da enchente
.
Meus sonhos são mar de arquipélagos
.
Ilhas de desatino incitam tempestades
Explodem febres e combates de rua
.
Naufrago no ventre da desumanidade
NONSENSE
Talvez eu não saiba o que é lirismo
Ou talvez meu arco seja mais forte
Que o alvo e a rota da flecha
Sei que sonetos me dão sono
Se não estiverem picotando o amor
- ah! Dirão os críticos e
Os artistas da forma
- o que vomita
A louca que nunca soube
Além das suas bocas de fome?
Sei da vida que quase sempre
Cava buracos no senso comum
Sei também de caminhões insones
Desgovernados à beira do asfalto
Onde a miséria arma vitrines
Para que a vida continue
Entre as pernas das filhas
Ou na impotência
Da carne tenra de seus meninos
O crime não compensa
Mas compra a consciência das flechas.
Lourença Lou – é mineira, professora e administradora. Às vezes é prosa, quase sempre, poesia. Participou de inúmeras coletâneas, Livros da Tribo, revistas e jornais literários, impressos e virtuais, com poemas, crônicas e contos. Publicou três livros de poesia pela Editora Penalux: "Equilibrista" (2016), "Pontiaguda" (2017), "Náufraga" (2018). Publicou seu primeiro livro de contos, "O insuspeitável perigo do instante-beijo e outros contos" (2020) pela editora Arribaçã.
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José Couto (Porto Alegre/RS). Professor e poeta brasileiro. É o autor de “A impermanência da escrita” (2010), “O soneto de Pandora” (2017) e “O unicórnio do sul e outras lendas poéticas” com ilustrações de Luiza Maciel Nogueira (2018). E dos inéditos “quase quasares” poesia,”Sete Cânticos Negros”, poesia, arte plástica e música, TOTEM (poesias a quatro mãos) com arte de Artur Madruga.
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