Cinco poemas do livro Todas as mães são tiranossauras, de Marcela Maria Azevedo
13 de janeiro de 2022
por Marcela Maria Azevedo
por Marcela Maria Azevedo
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aplicação do método darwinista para entender o desamparo
na véspera de um meteoro atingir a terra
e produzir a maior explosão da pré-história
os dinossauros se organizaram em êxodo
fileiras inteiras alinhadas
espécie por espécie
pegada por pegada
pra onde é que a gente vai
quando falta o ar?
já são sessenta e cinco milhões de anos
cento e sessenta e um de ciência naturalista
vinte e sete pra mim
e a seleção natural de darwin
persiste em não compreender
meus infinitos de coisas
como explica a origem da dor
das têmporas ao peito
como me ensina a dormir
sem o tato réptil
frio
como faz pra acordar
sem um rugido suave
de amor nas orelhas
ou como sobreviver minha espécie
com uma saudade fossilizada
de um cafuné
que nunca terá
considerações aprofundadas sobre a geografia de petrolina
como faz pra devolver os mapas
esquecer os documentos
adentrar territórios
sem ladeiras símbolos máquinas
como faz pra apagar os rastros
rasurar as linhas geográficas
dissolver a memória
da pele
esculpida num rosto
como faz pra se reescrever um nome
meu nome
encobrir monumentos
nossa velha casa
reerguer um corpo
esse corpo
de hoje décadas
e nomear esse não saber
que estive aqui
eu parti
como se cada figura minha precisasse de abandono.
saio de casa ao amanhecer
de corpo mudo
deixo minhas tralhas, lençóis, livros
que há anos ardem em meu respirar
e te renuncio
cautelosa, além do horizonte matutino
onde naturalmente as coisas se transformam
e as memórias se desfiguram, ingênuas
em nosso despertar.
eu sinto muito, pai
mas já não conseguia suportar
minha outra mulher.
por um consentimento evocativo de ternuras
visitei o quarto de frida kahlo, sister
vi mulheres de batons rubi com a mesma cara amarela da nossa mãe
: a que ela usa nas fotografias dos álbuns de família
e nas caixas deixadas ao avesso de qualquer solidão.
don't do that, woman
let me get you another drink
eu intervalo uma mulher
uma qualquer dessas que existem num atlas de imagens invisíveis
sentada num banquinho de trinta centímetros
de onde assiste ao percurso do sol enquanto faz seu crochê
brincando de nostalgia com o toque da agulha que
eventualmente perfura os seus dedos
e lugarejando o mundo com um olhar marejado
visitei o quarto de frida kahlo, irmã
tinha potes de lágrimas junto à foto de diego
e eu só conseguia dizer à minha mãe
: please don't do that, my woman
let me get you another drink
aos homens que usam alguns gramas de analgésico para fingir uma ilusão
que colocam os quadros de família no centro da sala de estar
junto de almofadas importadas e tapetes carregados com a poeira do século
falam com as bocas cheias de nunca peço desculpas
e derramam gordura nas toalhas de mesa de suas mães
a vocês
que nos tiram a presidência
os ministérios
os peitos caídos
as bundas murchas
e o nosso envelhecer
eu ainda uso as mesmas roupas
aqueles farrapos históricos que sobraram dos anos 80
cheios de rostos que são como cemitérios
a sua dor de cabeça vem do centro de sua mãe
e ela dói como dói uma mulher
por sermos diariamente extintas
e tiranossauras
na véspera de um meteoro atingir a terra
e produzir a maior explosão da pré-história
os dinossauros se organizaram em êxodo
fileiras inteiras alinhadas
espécie por espécie
pegada por pegada
pra onde é que a gente vai
quando falta o ar?
já são sessenta e cinco milhões de anos
cento e sessenta e um de ciência naturalista
vinte e sete pra mim
e a seleção natural de darwin
persiste em não compreender
meus infinitos de coisas
como explica a origem da dor
das têmporas ao peito
como me ensina a dormir
sem o tato réptil
frio
como faz pra acordar
sem um rugido suave
de amor nas orelhas
ou como sobreviver minha espécie
com uma saudade fossilizada
de um cafuné
que nunca terá
considerações aprofundadas sobre a geografia de petrolina
como faz pra devolver os mapas
esquecer os documentos
adentrar territórios
sem ladeiras símbolos máquinas
como faz pra apagar os rastros
rasurar as linhas geográficas
dissolver a memória
da pele
esculpida num rosto
como faz pra se reescrever um nome
meu nome
encobrir monumentos
nossa velha casa
reerguer um corpo
esse corpo
de hoje décadas
e nomear esse não saber
que estive aqui
eu parti
como se cada figura minha precisasse de abandono.
saio de casa ao amanhecer
de corpo mudo
deixo minhas tralhas, lençóis, livros
que há anos ardem em meu respirar
e te renuncio
cautelosa, além do horizonte matutino
onde naturalmente as coisas se transformam
e as memórias se desfiguram, ingênuas
em nosso despertar.
eu sinto muito, pai
mas já não conseguia suportar
minha outra mulher.
por um consentimento evocativo de ternuras
visitei o quarto de frida kahlo, sister
vi mulheres de batons rubi com a mesma cara amarela da nossa mãe
: a que ela usa nas fotografias dos álbuns de família
e nas caixas deixadas ao avesso de qualquer solidão.
don't do that, woman
let me get you another drink
eu intervalo uma mulher
uma qualquer dessas que existem num atlas de imagens invisíveis
sentada num banquinho de trinta centímetros
de onde assiste ao percurso do sol enquanto faz seu crochê
brincando de nostalgia com o toque da agulha que
eventualmente perfura os seus dedos
e lugarejando o mundo com um olhar marejado
visitei o quarto de frida kahlo, irmã
tinha potes de lágrimas junto à foto de diego
e eu só conseguia dizer à minha mãe
: please don't do that, my woman
let me get you another drink
aos homens que usam alguns gramas de analgésico para fingir uma ilusão
que colocam os quadros de família no centro da sala de estar
junto de almofadas importadas e tapetes carregados com a poeira do século
falam com as bocas cheias de nunca peço desculpas
e derramam gordura nas toalhas de mesa de suas mães
a vocês
que nos tiram a presidência
os ministérios
os peitos caídos
as bundas murchas
e o nosso envelhecer
eu ainda uso as mesmas roupas
aqueles farrapos históricos que sobraram dos anos 80
cheios de rostos que são como cemitérios
a sua dor de cabeça vem do centro de sua mãe
e ela dói como dói uma mulher
por sermos diariamente extintas
e tiranossauras
Marcela Maria Azevedo é uma errante — na vida e na poesia. Nasceu num 29 de fevereiro — o dia mais raro do mundo — na cidade de Petrolina-PE e, talvez por isso, por carregar a raridade do mundo na carne, tenha feito seu caminho atravessando o país de leste a oeste, encontrando no Pará um lugar do coração, e depois de norte a sul. É psicanalista e também pesquisadora das palavras, dedica-se a estudar a obra do poeta Max Martins, seu favorito, o que lhe garante também ser uma pesquisadora do amor. Tem poemas publicados em algumas revistas eletrônicas e Todas as mães são tiranossauras (urutau, 2021) é seu livro de estreia.
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