Poemas & Poetas indeléveis de 2021:
Maria Carpi
16 de dezembro de 2021
seleção de José Couto
por Maria Carpi
seleção de José Couto
por Maria Carpi
Eu agradeço tudo o que não tive.
Tudo o que não tive não precisa
Ser perdido ou apagado. Ninguém
Me arrancará dos braços o que não
Abracei. A ferrugem estanca a gula
Na borda desse nada a perder.
E mais agradeço o que não necessitei
E não tive. O que pedi e implorei,
E não tive. O peso imaterial, pesado
De carregar ou de engavetar, do que
Não tive. A constelação longínqua
A um palmo do desejo de não tê-la.
Igual ao olvido de haver nascido
E escrever. O tumulto das luzes
Nas altas ervas da cama. O que
A tinta não raptou com a escrita.
24.
O que sobrevive mora
Ao rés do chão e compartilha
A casa, um andar acima,
Com os que se foram
Ladrilhar passos no além.
Tantas almas habitam
O sítio de um sobrevivente
Sob um teto de cintilações,
Ainda em corpo, fecundado
Por uma gravidez de alto
Risco, a única possibilidade
Do perdão imperdoável.
35.
Aquele que perdoa puxa
Toda a solidão da existência.
Se o perdão apaga a culpa
E coloca a espada outra vez
Em sua bainha, a claridade
Do perdão não apaga a retidão
Do rosto frente à ferida.
Na compaixão, tu vês
O outro como a ti mesmo.
No perdão, o outro se vê
Como nunca vira a si próprio.
O cego adentra nas coisas
Mais que o olho sadio. O cego
Guia-se no vazio pela palavra
Cênica, passo a passo, sem cortinas.
O cego acalma a tonalidade
Da pigmentação, sem pincéis,
Escorrendo as tintas entre
Dedos da palavra pictórica.
E enxerga ouvindo o silêncio
Deixando que tudo se acerque
E venha beber em sua palma.
No cego a luz descansa.
Sempre que bem me olhas,
Foge-me a paisagem,
Amor de copa e amor
De fruto. Perco as ovelhas
E perco a mim, no campo
Aberto de um livro
De páginas adoentadas
Pelo andar dos olhares,
Pondo-me corpo ao corpo
Apedrejado de miragens.
O poema madurece o pão
E leveda a distância. Os grãos
Avermelham os lábios. Deixá-los
Em silêncio amornando.
Uma barca de remador dormindo.
Uma lágrima sem rolar. O leite
Sem escorrer. O óvulo antes
De lhe umedecer o sêmem. Antes
Dos olhos nascerem e a íris
Madurar a distância da sacralidade.
A luz não comporta figuras.
Anda ao desabrigo de imagens.
A encarnação do verbo
Era-lhe texto inconcluso.
Necessitou também desfigurar-se.
Em pele e osso, expulsar-se
Do vernáculo. Quem leu
O rosto, não virou a página
De sua sombra. Daí em diante
Esbarra-se na luz e não há
Suporte à semântica sem abstração
Estética, atravessando pregos
Na palma da mão escrevente.
CARDADO EM FLOR
O lugar mais sagrado não é
Onde nasceste. Esquecendo-o,
As parreiras sopesam. Vê bem
Onde morres. Deixa-o cardado
Em flor. Deixa com o melhor
De ti, o lugar a seres chamado.
Eu agradeço a todos os que
De uma forma ou outra, bem
Ou mal, dialogaram com minha
Morte, em resguardo, enquanto
Eu madurava e nascia de parto
Natural, rompendo-me as águas
Do paraíso e cortando vez meu
Cordão umbilical com as estrelas.
Amor, essa fora de não
Ter força; essa paz
Dando a pez; esse rosto
Incandescente, nunca
Lido, que se sobrepõe
Aos demais e reluta
Quando todos fenecem
E mais se aviva, encoberto.
DESIDERIUM DESERAVI
Sei com exatidão plena
Tudo o que não sei. Amo
Com paixão extrema tudo
O que não amei. Em vez de
Anunciar, vou cumprir um
Rosto na multidão. Reuni-lo.
Não como as frutas num cesto,
Mas como as sementes no fruto.
NOS GERAIS DA DOR
Se um pássaro não tivesse asas,
Seria uma bala deflagrada, alta
Noite, tocha incendiada, mais um
Insutentável soluço no mar, se
Um pássaro não tivesse asas, se
Arremessaria contra a solidão,
Contra o peso, contra a laje de
Si mesmo, até que a imensidão
Exilada lhe estivesse, dentro,
Desmedida, revolta, sem asas.
Tudo o que não tive não precisa
Ser perdido ou apagado. Ninguém
Me arrancará dos braços o que não
Abracei. A ferrugem estanca a gula
Na borda desse nada a perder.
E mais agradeço o que não necessitei
E não tive. O que pedi e implorei,
E não tive. O peso imaterial, pesado
De carregar ou de engavetar, do que
Não tive. A constelação longínqua
A um palmo do desejo de não tê-la.
Igual ao olvido de haver nascido
E escrever. O tumulto das luzes
Nas altas ervas da cama. O que
A tinta não raptou com a escrita.
24.
O que sobrevive mora
Ao rés do chão e compartilha
A casa, um andar acima,
Com os que se foram
Ladrilhar passos no além.
Tantas almas habitam
O sítio de um sobrevivente
Sob um teto de cintilações,
Ainda em corpo, fecundado
Por uma gravidez de alto
Risco, a única possibilidade
Do perdão imperdoável.
35.
Aquele que perdoa puxa
Toda a solidão da existência.
Se o perdão apaga a culpa
E coloca a espada outra vez
Em sua bainha, a claridade
Do perdão não apaga a retidão
Do rosto frente à ferida.
Na compaixão, tu vês
O outro como a ti mesmo.
No perdão, o outro se vê
Como nunca vira a si próprio.
O cego adentra nas coisas
Mais que o olho sadio. O cego
Guia-se no vazio pela palavra
Cênica, passo a passo, sem cortinas.
O cego acalma a tonalidade
Da pigmentação, sem pincéis,
Escorrendo as tintas entre
Dedos da palavra pictórica.
E enxerga ouvindo o silêncio
Deixando que tudo se acerque
E venha beber em sua palma.
No cego a luz descansa.
Sempre que bem me olhas,
Foge-me a paisagem,
Amor de copa e amor
De fruto. Perco as ovelhas
E perco a mim, no campo
Aberto de um livro
De páginas adoentadas
Pelo andar dos olhares,
Pondo-me corpo ao corpo
Apedrejado de miragens.
O poema madurece o pão
E leveda a distância. Os grãos
Avermelham os lábios. Deixá-los
Em silêncio amornando.
Uma barca de remador dormindo.
Uma lágrima sem rolar. O leite
Sem escorrer. O óvulo antes
De lhe umedecer o sêmem. Antes
Dos olhos nascerem e a íris
Madurar a distância da sacralidade.
A luz não comporta figuras.
Anda ao desabrigo de imagens.
A encarnação do verbo
Era-lhe texto inconcluso.
Necessitou também desfigurar-se.
Em pele e osso, expulsar-se
Do vernáculo. Quem leu
O rosto, não virou a página
De sua sombra. Daí em diante
Esbarra-se na luz e não há
Suporte à semântica sem abstração
Estética, atravessando pregos
Na palma da mão escrevente.
CARDADO EM FLOR
O lugar mais sagrado não é
Onde nasceste. Esquecendo-o,
As parreiras sopesam. Vê bem
Onde morres. Deixa-o cardado
Em flor. Deixa com o melhor
De ti, o lugar a seres chamado.
Eu agradeço a todos os que
De uma forma ou outra, bem
Ou mal, dialogaram com minha
Morte, em resguardo, enquanto
Eu madurava e nascia de parto
Natural, rompendo-me as águas
Do paraíso e cortando vez meu
Cordão umbilical com as estrelas.
Amor, essa fora de não
Ter força; essa paz
Dando a pez; esse rosto
Incandescente, nunca
Lido, que se sobrepõe
Aos demais e reluta
Quando todos fenecem
E mais se aviva, encoberto.
DESIDERIUM DESERAVI
Sei com exatidão plena
Tudo o que não sei. Amo
Com paixão extrema tudo
O que não amei. Em vez de
Anunciar, vou cumprir um
Rosto na multidão. Reuni-lo.
Não como as frutas num cesto,
Mas como as sementes no fruto.
NOS GERAIS DA DOR
Se um pássaro não tivesse asas,
Seria uma bala deflagrada, alta
Noite, tocha incendiada, mais um
Insutentável soluço no mar, se
Um pássaro não tivesse asas, se
Arremessaria contra a solidão,
Contra o peso, contra a laje de
Si mesmo, até que a imensidão
Exilada lhe estivesse, dentro,
Desmedida, revolta, sem asas.
Nascida em Guaporé/RS em 1939, Maria Carpi é professora, advogada e defensora pública. Estreou na literatura em 1990, aos 51 anos. Hoje, com 14 obras publicadas, a premiada poeta acredita que a beleza da vida está na lentidão de cada momento.
Entre as suas principais obras estão “Nos gerais da dor” (1990) — mais tarde traduzido por Brunello de Cusatis e editado na Itália —, “Desiderium desideravi” (1990), “Vidência e acaso” (1992), “A migalha e a fome” (2000) e “O cego e a natureza morta” (2016). A mais recente é o volume de poemas “Tudo que é belo é efêmero” |
José Couto (Porto Alegre/RS). Professor e poeta brasileiro. É o autor de “A impermanência da escrita” (2010), “O soneto de Pandora” (2017) e “O unicórnio do sul e outras lendas poéticas” com ilustrações de Luiza Maciel Nogueira (2018). E dos inéditos “quase quasares” poesia,”Sete Cânticos Negros”, poesia, arte plástica e música, TOTEM (poesias a quatro mãos) com arte de Artur Madruga.
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