Quatro poemas do livro Leite de mulher, de Marina Ruivo
9 de dezembro de 2021
por Marina Ruivo
por Marina Ruivo
Só, sozinha
Às duas da tarde de uma terça-feira
desço as escadarias do Bloco N.
Pantufas por cima das meias vermelhas
roçam, suaves, o chão escurecido.
Calça velha imitando veludo,
camiseta surrada, a cara do Che e os peitos
balangando sem proteção.
Na mão, dois sacos de lixo.
Não quero saber se encontro alguém,
o caminho não leva ao mundo.
Há dias sou eu e os mortos,
ou vivos-mortos, falam pelos livros,
as vozes ora graves, outrora delicadas.
De pantufa, sem maquiagem,
crio meu mundo, só meu.
Lavo a louça quando quero,
tiro o lixo no meio da tarde,
no começo da noite, ou não tiro,
deixo que cheire mal e apodreça.
Almoço às onze ou às quinze,
benção diária que me faço.
Depois os horários voltam,
depois tudo volta mas, por ora,
deixem-me provar a ausência,
essa solidão tão refrescante,
como se não houvesse mundo,
nem ninguém,
nem mesmo amanhã.
desço as escadarias do Bloco N.
Pantufas por cima das meias vermelhas
roçam, suaves, o chão escurecido.
Calça velha imitando veludo,
camiseta surrada, a cara do Che e os peitos
balangando sem proteção.
Na mão, dois sacos de lixo.
Não quero saber se encontro alguém,
o caminho não leva ao mundo.
Há dias sou eu e os mortos,
ou vivos-mortos, falam pelos livros,
as vozes ora graves, outrora delicadas.
De pantufa, sem maquiagem,
crio meu mundo, só meu.
Lavo a louça quando quero,
tiro o lixo no meio da tarde,
no começo da noite, ou não tiro,
deixo que cheire mal e apodreça.
Almoço às onze ou às quinze,
benção diária que me faço.
Depois os horários voltam,
depois tudo volta mas, por ora,
deixem-me provar a ausência,
essa solidão tão refrescante,
como se não houvesse mundo,
nem ninguém,
nem mesmo amanhã.
Caçadas
Sigo teu rastro-gazela, sou eu o guepardo
e peço: pegue-me com as presas,
articulações e nervos até que eu grite.
Não, não deixo que fuja.
Deixe-me as pernas abertas, o líquido jorrando,
é meu sangue, minha seiva,
estertor dos corpos perfeitos,
olhos revirados na hora exata,
sentidos derrotados e, ao voltar,
o ganho de mais nitidez, mais amor.
Tua avidez gruda na minha e me faz tua,
vê como é boa a sede do corpo?
Seu dorso vem e me pega solta,
sou tua zebra no frio do mundo.
Monte-me com amor, insensata posse,
faz desse encontro a explosão luzidia,
corpos gementes, almas, junção
de átomos até eu não saber:
de mim, de ti, de nada da vida.
Se eu soubesse que era sim, amor,
se soubesse que podia ser assim...
e peço: pegue-me com as presas,
articulações e nervos até que eu grite.
Não, não deixo que fuja.
Deixe-me as pernas abertas, o líquido jorrando,
é meu sangue, minha seiva,
estertor dos corpos perfeitos,
olhos revirados na hora exata,
sentidos derrotados e, ao voltar,
o ganho de mais nitidez, mais amor.
Tua avidez gruda na minha e me faz tua,
vê como é boa a sede do corpo?
Seu dorso vem e me pega solta,
sou tua zebra no frio do mundo.
Monte-me com amor, insensata posse,
faz desse encontro a explosão luzidia,
corpos gementes, almas, junção
de átomos até eu não saber:
de mim, de ti, de nada da vida.
Se eu soubesse que era sim, amor,
se soubesse que podia ser assim...
Fechados
Para Auria Oliveira
A poeira da quadra mima meus pés,
o som da tosse, longe,
lá de onde vem o motor,
esse ar-condicionado nunca desliga.
O calor nos mata devagar, sempre.
As maritacas passam e cantam,
mas o barulho do sono é mais forte,
se me derem uma cama eu durmo.
Por isso vou à Polinésia e volto,
longe dos latidos, das carretas
e de seus voos que matam mulheres,
torcendo-as em ferragens de motocicletas.
A serra corta a madeira e o fio do amor,
a mulher está morta e não ensina mais
nem à sua neta, que estava por chegar.
Estamos imóveis, ouvindo o chão:
alguém vem no motor da moto,
paramos todos, mas é só o desejo do pão,
café quente que expulse a ausência do giz,
da lousa, das crianças barulhentas.
Quero todos de volta, em casa,
cansei de ser espadachim do vento,
logo esse, que aqui não surge mais.
A poeira da quadra mima meus pés,
o som da tosse, longe,
lá de onde vem o motor,
esse ar-condicionado nunca desliga.
O calor nos mata devagar, sempre.
As maritacas passam e cantam,
mas o barulho do sono é mais forte,
se me derem uma cama eu durmo.
Por isso vou à Polinésia e volto,
longe dos latidos, das carretas
e de seus voos que matam mulheres,
torcendo-as em ferragens de motocicletas.
A serra corta a madeira e o fio do amor,
a mulher está morta e não ensina mais
nem à sua neta, que estava por chegar.
Estamos imóveis, ouvindo o chão:
alguém vem no motor da moto,
paramos todos, mas é só o desejo do pão,
café quente que expulse a ausência do giz,
da lousa, das crianças barulhentas.
Quero todos de volta, em casa,
cansei de ser espadachim do vento,
logo esse, que aqui não surge mais.
Olhares
Cães andaluzes, meus olhos querem costuras
a estas pestanas insistentes, taturanas
que se lançam mudas ao mundo,
empecilho renitente do sono.
Dias e noites passam no quarto azul,
nada vejo senão suas paredes,
o crucifixo encimando a cama,
as reproduções baratas.
Amansados, os sintomas persistem,
mas sei que está aqui,
em meu corpo.
Seu desejo sem propósito:
a reprodução infinita.
E me dói o peito, literalmente,
fundando o medo do roubo do ar.
Meu corpo, congelado, quer se rasgar.
Segue ele, sigo eu, seguimos.
Queremos apenas viver
neste mundo mais inóspito,
irreal, dolorosamente concreto.
A parede é meia, o olho não fecha.
Não sabe o que espera, o que vem
e o que não virá mais:
para mim,
para nós.
a estas pestanas insistentes, taturanas
que se lançam mudas ao mundo,
empecilho renitente do sono.
Dias e noites passam no quarto azul,
nada vejo senão suas paredes,
o crucifixo encimando a cama,
as reproduções baratas.
Amansados, os sintomas persistem,
mas sei que está aqui,
em meu corpo.
Seu desejo sem propósito:
a reprodução infinita.
E me dói o peito, literalmente,
fundando o medo do roubo do ar.
Meu corpo, congelado, quer se rasgar.
Segue ele, sigo eu, seguimos.
Queremos apenas viver
neste mundo mais inóspito,
irreal, dolorosamente concreto.
A parede é meia, o olho não fecha.
Não sabe o que espera, o que vem
e o que não virá mais:
para mim,
para nós.
Marina Ruivo nasceu no Dia Internacional da Mulher de 1978, em São Paulo. Cursou Letras/Português na USP e lá defendeu o mestrado e o doutorado. Trabalhou como freelancer no mercado editorial e atualmente é professora universitária. Mantém o canal A barca Marina, no Youtube e publicou Nossa barca (Patuá, 2019) e Geração armada: literatura e resistência em Angola e no Brasil (Alameda Editorial/Fapesp, 2015).
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