Cinco poemas de Lança chamas
17 de fevereiro de 2022
por Regina Azevedo
por Regina Azevedo
PLUMA
deixar a blusa cair
como uma pluma que desliza na película
que é um hímen que é um mundo
e mostrar a todas as americanas
que no nordeste do brasil
se sangra todo dia
e deixar que saibam a sorte
que é morar aqui
e ter sempre
marquinha de biquíni
e esse sangue
de gente que nasce
no interior do interior
de tudo
O SERTÃO SOU EU
capim seco
corta pele
atinge carne
longe gado cai
gado só fica em pé com água
vovó quase não conhece
terra molhada
sandália minha brilha
pé de solas avermelhadas
desci do salto
passeio na estrada do tempo
corpo tem necessidade
de estar perto da alma
corpo quer morar em casa
corpo precisa adormecer
ouvindo sua voz
canto do galo celebra milharal
água chegando na caixa
paredes ficam frias
afundo surda em colcha de pano
cada retalho tecido pela desistência
de um bicho
afogo muda em cílio de pavão
pés repousam na rede
chaleira geme
capim santo
alma despida de cidade
dor se despede
deixa corpo aos poucos
chove
TEMPO PENSO
à noite, deito a cabeça no
travesseiro e penso penso
mais do que gostaria de pensar
e como não penso quando
sonho ou durmo não consigo
dormir ou sonhar
à noite, deito a cabeça no
travesseiro e penso penso
feito um pêndulo penso
que estamos com o tempo
pendurado no pescoço como
um pêndulo
à noite, deito a cabeça no
travesseiro e penso penso
no ônibus a caminho do passado
penso no presidente fico enjoada
mudo o lado penso
até quando não sonhar
à noite, deito a cabeça no
travesseiro e penso penso
penso no vírus penso no que
dona maria me receitaria
para essa doença
doença de adoecer por dentro
cabeça e peito
ancorados num único momento
à noite, deito a cabeça no
travesseiro e não penso
se é febre ou se já sou
toda magma, lava, chama
à noite, deito a cabeça no travesseiro
não durmo, não sonho
escrevo
LÍNGUA
li um texto
com meu namorado
e agora é me come pra cima
me come pra baixo
é que a vida inteira
tentamos fincar bandeiras
enquanto podíamos sambar
mas agora ele diz
me encoxa
e eu adoro
claro
fico logo molhada
com essa ideia
de sobrepor camadas
de fazer da língua
a própria bala
ESCREVO POEMAS
"eu te mato com a língua"
yung buda
escrevo poemas
porque não posso
atirar facas
atirar copos
isso lhes pouparia
a necessidade
de passar pano
- e então de que se ocupariam os homens?
sem piedade ou perdão
escrever é sacudir a cidade
já tenho até me acostumado
a brincar com fogo
outro poema
porque não se responde
um revólver
escrevo como quem lança chamas
deixar a blusa cair
como uma pluma que desliza na película
que é um hímen que é um mundo
e mostrar a todas as americanas
que no nordeste do brasil
se sangra todo dia
e deixar que saibam a sorte
que é morar aqui
e ter sempre
marquinha de biquíni
e esse sangue
de gente que nasce
no interior do interior
de tudo
O SERTÃO SOU EU
capim seco
corta pele
atinge carne
longe gado cai
gado só fica em pé com água
vovó quase não conhece
terra molhada
sandália minha brilha
pé de solas avermelhadas
desci do salto
passeio na estrada do tempo
corpo tem necessidade
de estar perto da alma
corpo quer morar em casa
corpo precisa adormecer
ouvindo sua voz
canto do galo celebra milharal
água chegando na caixa
paredes ficam frias
afundo surda em colcha de pano
cada retalho tecido pela desistência
de um bicho
afogo muda em cílio de pavão
pés repousam na rede
chaleira geme
capim santo
alma despida de cidade
dor se despede
deixa corpo aos poucos
chove
TEMPO PENSO
à noite, deito a cabeça no
travesseiro e penso penso
mais do que gostaria de pensar
e como não penso quando
sonho ou durmo não consigo
dormir ou sonhar
à noite, deito a cabeça no
travesseiro e penso penso
feito um pêndulo penso
que estamos com o tempo
pendurado no pescoço como
um pêndulo
à noite, deito a cabeça no
travesseiro e penso penso
no ônibus a caminho do passado
penso no presidente fico enjoada
mudo o lado penso
até quando não sonhar
à noite, deito a cabeça no
travesseiro e penso penso
penso no vírus penso no que
dona maria me receitaria
para essa doença
doença de adoecer por dentro
cabeça e peito
ancorados num único momento
à noite, deito a cabeça no
travesseiro e não penso
se é febre ou se já sou
toda magma, lava, chama
à noite, deito a cabeça no travesseiro
não durmo, não sonho
escrevo
LÍNGUA
li um texto
com meu namorado
e agora é me come pra cima
me come pra baixo
é que a vida inteira
tentamos fincar bandeiras
enquanto podíamos sambar
mas agora ele diz
me encoxa
e eu adoro
claro
fico logo molhada
com essa ideia
de sobrepor camadas
de fazer da língua
a própria bala
ESCREVO POEMAS
"eu te mato com a língua"
yung buda
escrevo poemas
porque não posso
atirar facas
atirar copos
isso lhes pouparia
a necessidade
de passar pano
- e então de que se ocupariam os homens?
sem piedade ou perdão
escrever é sacudir a cidade
já tenho até me acostumado
a brincar com fogo
outro poema
porque não se responde
um revólver
escrevo como quem lança chamas
Regina Azevedo nasceu em Natal (RN), em 2000, e é poeta. Publicou alguns livros de poemas, entre eles Pirueta (2017, selo doburro), Vermelho fogo (2021, independente) e Carcaça (2021, Munganga Edições). Integra a antologia As 29 poetas hoje (2021, Companhia das Letras), organizada por Heloisa Buarque de Hollanda, e a Biblioteca Madrinha Lua, da editora Peirópolis, com o título Lança chamas, que reúne um apanhado de sua produção poética.
Foto: Luana Tayze |