Dez poemas de Thiago de Mello
(1926-2022)
15 de janeiro de 2022
seleção de João Gomes
seleção de João Gomes
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A FRUTA ABERTA
Agora sei quem sou.
Sou pouco, mas sei muito,
porque sei o poder imenso
que morava comigo,
mas adormecido como um peixe grande
no fundo escuro e silencioso do rio
e que hoje é como uma árvore
plantada bem alta no meio da minha vida.
Agora sei as coisas como são.
Sei porque a água escorre meiga
e porque acalanto é o seu ruído
na noite estrelada
que se deita no chão da nova casa.
Agora sei as coisas poderosas
que valem dentro de um homem.
Aprendi contigo, amada.
Aprendi com a tua beleza,
com a macia beleza de tuas mãos,
teus longos dedos de pétalas de prata,
a ternura oceânica do teu olhar,
verde de todas as cores
e sem nenhum horizonte;
com tua pele fresca e enluarada,
a tua infância permanente,
tua sabedoria fabulária
brilhando distraída no teu rosto.
Grandes coisas simples aprendi contigo,
com o teu parentesco com os mitos mais terrestres,
com as espigas douradas no vento,
com as chuvas de verão
e com as linhas da minha mão.
Contigo aprendi
que o amor reparte
mas sobretudo acrescenta,
e a cada instante mais aprendo
com o teu jeito de andar pela cidade
como se caminhasses de mãos dadas com o ar,
com o teu gosto de erva molhada,
com a luz dos teus dentes,
tuas delicadezas secretas,
a alegria do teu amor maravilhado,
e com a tua voz radiosa
que sai da tua boca
inesperada como um arco-íris
partindo ao meio e unindo os extremos da vida,
e mostrando a verdade
como uma fruta aberta.
ARTE DE AMAR
Não faço poemas como quem chora,
nem faço versos como quem morre.
Quem teve esse gosto foi o bardo Bandeira
quando muito moço; achava que tinha
os dias contados pela tísica
e até se acanhava de namorar.
Faço poemas como quem faz amor.
É a mesma luta suave e desvairada
enquanto a rosa orvalhada
se vai entreabrindo devagar.
A gente nem se dá conta, até acha bom,
o imenso trabalho que amor dá para fazer.
Perdão, amor não se faz.
Quando muito, se desfaz.
Fazer amor é um dizer
(a metáfora é falaz)
de quem pretende vestir
com roupa austera a beleza
do corpo da primavera.
O verbo exato é foder.
A palavra fica nua
para todo mundo ver
o corpo amante cantando
a glória do seu poder.
DIÁRIO DE UM BRASILEIRO
O brasileiro convive bem com o escândalo moral.
Os ladrões infestam os salões de luxo,
os Bancos estouram, os banqueiros
são cumprimentados com reverência,
o Presidente do Congresso chama o senador
de bandido, sim senhor, vossa excelência.
O Presidente diz pela televisão
que "é preciso acabar com a roubalheira
nos dinheiros públicos".
As pessoas das cidades grandes
vivem amedrontadas, qualquer
transeunte pode ser um assaltante.
As meninas cheiram cola. Depois
vão dar o que têm de mais precioso
ao preço de um soco na cara desdentada.
O brasileiro convive com o escândalo
como se fosse o seu pão de cada dia,
com uma indiferença letal.
Como se dormir na casa com um rinoceronte,
mas rinoceronte mesmo,
fosse a coisa mais natural do mundo,
chegando a cheirar a camélias.
O povo, um dia.
Do povo vai depender
a vida que vai viver,
quando um dia merecer.
Vai doer, vai aprender.
É NATURAL, MAS FEDE
Tudo é muito natural. É como o mar
noturno, as ondas vão, as ondas vêm.
É como a cotidiana hipocrisia,
eu nem sei mais como se diz bom-dia.
É como o beija-flor querendo o sumo
da flor que entrega sem saber que dá.
É a gaivota planando, é natural,
o peixe que ela viu já foi-se embora,
desesperança alada, de perfil.
De frente é o olhar, que logo se desvia
da legião deserdada, é natural.
É a cascata descendo, é o girassol
humilde na esperança de uma luz
que lhe brinde o favor da poluição.
É tudo, tudo, muito natural.
A paloma cagando na cabeça
da princesa esculpida em solidão.
É como aquela antiga mão do índio
que eu vi tremendo na perfuratriz
num sovacão da mina boliviana.
É como a história natural das águas
que fazem dos rebojos o mau fim
dos homens que perseguem seringueiras,
destino duro do meu tio Joaquim.
É tudo natural na Venezuela:
o povo come ardências de óleo sujo
enquanto as autopistas te deslumbram
e forjas teorias on the rocks.
A solidariedade se transforma
em favor, os crimes em memória,
ninguém mais se comove e se acostuma
à dor da mordidura em pleno peito.
Quero voltar pro morro, é natural,
pois lá é que estão as curvas da chinela
da morena que um dia, fatigada,
queria mais, que eu fosse dentro dela,
como um rei, um brinquedo, uma agonia,
e então nós fomos juntos sendo a vida,
mas de repente a morte, é natural.
Tudo é tão natural, é como o céu
estrelado demais da minha terra
cobrindo o sonho opaco de um menino
— mordido de carapanã, caralho! --
que sequer sabe onde começa a fome.
As vozes do Salgueiro, na avenida,
porta-estandarte verde, me perguntam:
— E você sabe onde termina o céu?
E você sabe onde termina a terra?
E você sabe onde termina o mar?
Canto que não, naturalmente não.
Tenho muitos mistérios misturados,
curtidos em salmoura fedorenta.
Alguns serão matéria de mercado,
como o meu coração que, tantas vezes
exposto esteve em campos de amapolas,
mas nunca foi comprado, é natural.
Outros serão caterva de alçapões:
químico, turvo, o mundo me penetra
pelos poros mais podres, me rebelo,
não posso me entregar. Homem do Atlântico
pasto da luz latino-americana,
conheço a petroquímica ao reverso:
um fogo que se entrega à atmosfera,
fedento triste e inútil, enquanto hormônios,
enquanto pernas, enquanto fervores,
na solidão soturna das cidades,
na entressombra dourada das favelas,
se abraçam procurando a primavera
numa chama que nunca vai jamais
erguer a liberdade, é natural,
desse escuro porão, refúgio do homem,
mordido pelo sol do escorpião.
NA MANHÃ DO MILÊNIO
De que valeu o assombro indignado
e esta perseverança que me acende
em pleno dia a estrela que me guia,
seguro do meu chão e do meu sonho?
De que valeram todos os prodígios
da ciência mergulhando nas funduras
mais escuras da terra e dominar
jamais imaginadas vastidões
para encontrar a luz fossilizada?
Do que valeu meu passo peregrino
pelo tempo, meu grito solidário,
a entrega ardente, o castigo injusto,
o viver afastado do meu povo,
só porque desfraldei em plena praça
a bandeira do amor? Do que valeu
se hoje, manhã deste milênio novo,
avança, imensa e escura bem na fronte
a marca suja da miséria humana,
gravada em cinza pela indiferença
dos que pretendem donos ser da vida,
avança escura uma legião de crianças
deserdadas do amor e todavia
capazes de sorrir: maior milagre
do século perverso que findou?
De que valeram todas as palavras
que proferi na trova da esperança?
Tão pouco, talvez nada. Não consola
saber que fiz, que fiz a minha parte,
que reparti com tantos o diamante,
que olhei o sol de frente e não fugi
(nem do meu próprio medo).
De consolo não cuido. Pois valeu.
"Que tudo vale a pena quando a alma
não é pequena."
Não sei o tamanho
da minha alma. Só sei que vou varando
o fim do rio, já posso discernir
a margem que me chama. Mas obstinado
confiante sigo no poder distante
da estrela alucinante. Que destino
de estrela é o de brilhar.
E mesmo extinta
brilhante permanece sobre o mundo.
NARCISO CEGO
Tudo o que de mim se perde
acrescenta-se ao que sou.
Contudo, me desconheço.
Pelas minhas cercanias
passeio — não me frequento.
Por sobre fonte erma e esquiva
flutua-me, íntegra, a face.
Mas nunca me vejo: e sigo
com face mal disfarçada.
Oh que amargo é o não poder
rosto a rosto contemplar
aquilo que ignoto sou;
distinguir até que ponto
sou eu mesmo que me levo
ou se um nume irrevelável
que (para ser) vem morar
comigo, dentro de mim,
mas me abandona se rolo
pelos declives do mundo.
Desfaço-me do que sonho:
faço-me sonho de alguém
oculto. Talvez um Deus
sonhe comigo, cobice
o que eu guardo e nunca usei.
Cego assim, não me decifro.
E o imaginar-me sonhado
não me completa: a ganância
de ser-me inteiro prossegue.
E pairo — pânico mudo --
entre o sonho e o sonhador.
NÃO APRENDO A LIÇÃO
A lição de conviver,
senão de sobreviver
no mundo feroz dos homens,
me ensina que não convém
permitir que o tempo injusto
e a vida iníqua me impeçam
de dormir tranquilamente.
Pois sucede que não durmo.
Frente à verdade ferida
pelos guardiães da injustiça,
ao escárnio da opulência
e o poderio dourado
cujo esplendor se alimenta
da fome dos humilhados,
o melhor é acostumar-se,
o mundo foi sempre assim.
Contudo, não me acostumo.
A lição persiste sábia:
convém cabeça, cuidado,
que as engrenagens esmagam
o sonho que não se submete.
E que a razão prevaleça
vigilante e não conceda
espaços para a emoção.
Perante a vida ofendida
não vale a indignação.
Complexas são as causas
do desamparo do povo.
Mas não aprendo a lição.
Concedo que me comovo.
SONHO DOMADO
Sei que é preciso sonhar.
Campo sem orvalho, seca
A frente de quem não sonha.
Quem não sonha o azul do voo
perde seu poder de pássaro.
A realidade da relva
cresce em sonho no sereno
para não ser relva apenas,
mas a relva que se sonha.
Não vinga o sonho da folha
se não crescer incrustado
no sonho que se fez árvore.
Sonhar, mas sem deixar nunca
que o sol do sonho se arraste
pelas campinas do vento.
É sonhar, mas cavalgando
o sonho e inventando o chão
para o sonho florescer.
PARA OS QUE VIRÃO
Como sei pouco, e sou pouco,
faço o pouco que me cabe
me dando inteiro.
Sabendo que não vou ver
o homem que quero ser.
Já sofri o suficiente
para não enganar a ninguém:
principalmente aos que sofrem
na própria vida, a garra
da opressão, e nem sabem.
Não tenho o sol escondido
no meu bolso de palavras.
Sou simplesmente um homem
para quem já a primeira
e desolada pessoa
do singular – foi deixando,
devagar, sofridamente
de ser, para transformar-se
– muito mais sofridamente –
na primeira e profunda pessoa
do plural.
Não importa que doa: é tempo
de avançar de mão dada
com quem vai no mesmo rumo,
mesmo que longe ainda esteja
de aprender a conjugar
o verbo amar.
É tempo sobretudo
de deixar de ser apenas
a solitária vanguarda
de nós mesmos.
Se trata de ir ao encontro.
( Dura no peito, arde a límpida
verdade dos nossos erros. )
Se trata de abrir o rumo.
Os que virão, serão povo,
e saber serão, lutando.
FIO DA VIDA
Já fiz mais do que podia
Nem sei como foi que fiz.
Muita vez nem quis a vida
a vida foi quem me quis.
Para me ter como servo?
Para acender um tição
na frágua da indiferença?
Para abrir um coração
no fosso da inteligência?
Não sei, nunca vou saber.
Sei que de tanto me ter,
acabei amando a vida.
Vida que anda por um fio,
diz quem sabe. Pode andar,
contanto (vida é milagre)
que bem cumprido o meu fio.
Agora sei quem sou.
Sou pouco, mas sei muito,
porque sei o poder imenso
que morava comigo,
mas adormecido como um peixe grande
no fundo escuro e silencioso do rio
e que hoje é como uma árvore
plantada bem alta no meio da minha vida.
Agora sei as coisas como são.
Sei porque a água escorre meiga
e porque acalanto é o seu ruído
na noite estrelada
que se deita no chão da nova casa.
Agora sei as coisas poderosas
que valem dentro de um homem.
Aprendi contigo, amada.
Aprendi com a tua beleza,
com a macia beleza de tuas mãos,
teus longos dedos de pétalas de prata,
a ternura oceânica do teu olhar,
verde de todas as cores
e sem nenhum horizonte;
com tua pele fresca e enluarada,
a tua infância permanente,
tua sabedoria fabulária
brilhando distraída no teu rosto.
Grandes coisas simples aprendi contigo,
com o teu parentesco com os mitos mais terrestres,
com as espigas douradas no vento,
com as chuvas de verão
e com as linhas da minha mão.
Contigo aprendi
que o amor reparte
mas sobretudo acrescenta,
e a cada instante mais aprendo
com o teu jeito de andar pela cidade
como se caminhasses de mãos dadas com o ar,
com o teu gosto de erva molhada,
com a luz dos teus dentes,
tuas delicadezas secretas,
a alegria do teu amor maravilhado,
e com a tua voz radiosa
que sai da tua boca
inesperada como um arco-íris
partindo ao meio e unindo os extremos da vida,
e mostrando a verdade
como uma fruta aberta.
ARTE DE AMAR
Não faço poemas como quem chora,
nem faço versos como quem morre.
Quem teve esse gosto foi o bardo Bandeira
quando muito moço; achava que tinha
os dias contados pela tísica
e até se acanhava de namorar.
Faço poemas como quem faz amor.
É a mesma luta suave e desvairada
enquanto a rosa orvalhada
se vai entreabrindo devagar.
A gente nem se dá conta, até acha bom,
o imenso trabalho que amor dá para fazer.
Perdão, amor não se faz.
Quando muito, se desfaz.
Fazer amor é um dizer
(a metáfora é falaz)
de quem pretende vestir
com roupa austera a beleza
do corpo da primavera.
O verbo exato é foder.
A palavra fica nua
para todo mundo ver
o corpo amante cantando
a glória do seu poder.
DIÁRIO DE UM BRASILEIRO
O brasileiro convive bem com o escândalo moral.
Os ladrões infestam os salões de luxo,
os Bancos estouram, os banqueiros
são cumprimentados com reverência,
o Presidente do Congresso chama o senador
de bandido, sim senhor, vossa excelência.
O Presidente diz pela televisão
que "é preciso acabar com a roubalheira
nos dinheiros públicos".
As pessoas das cidades grandes
vivem amedrontadas, qualquer
transeunte pode ser um assaltante.
As meninas cheiram cola. Depois
vão dar o que têm de mais precioso
ao preço de um soco na cara desdentada.
O brasileiro convive com o escândalo
como se fosse o seu pão de cada dia,
com uma indiferença letal.
Como se dormir na casa com um rinoceronte,
mas rinoceronte mesmo,
fosse a coisa mais natural do mundo,
chegando a cheirar a camélias.
O povo, um dia.
Do povo vai depender
a vida que vai viver,
quando um dia merecer.
Vai doer, vai aprender.
É NATURAL, MAS FEDE
Tudo é muito natural. É como o mar
noturno, as ondas vão, as ondas vêm.
É como a cotidiana hipocrisia,
eu nem sei mais como se diz bom-dia.
É como o beija-flor querendo o sumo
da flor que entrega sem saber que dá.
É a gaivota planando, é natural,
o peixe que ela viu já foi-se embora,
desesperança alada, de perfil.
De frente é o olhar, que logo se desvia
da legião deserdada, é natural.
É a cascata descendo, é o girassol
humilde na esperança de uma luz
que lhe brinde o favor da poluição.
É tudo, tudo, muito natural.
A paloma cagando na cabeça
da princesa esculpida em solidão.
É como aquela antiga mão do índio
que eu vi tremendo na perfuratriz
num sovacão da mina boliviana.
É como a história natural das águas
que fazem dos rebojos o mau fim
dos homens que perseguem seringueiras,
destino duro do meu tio Joaquim.
É tudo natural na Venezuela:
o povo come ardências de óleo sujo
enquanto as autopistas te deslumbram
e forjas teorias on the rocks.
A solidariedade se transforma
em favor, os crimes em memória,
ninguém mais se comove e se acostuma
à dor da mordidura em pleno peito.
Quero voltar pro morro, é natural,
pois lá é que estão as curvas da chinela
da morena que um dia, fatigada,
queria mais, que eu fosse dentro dela,
como um rei, um brinquedo, uma agonia,
e então nós fomos juntos sendo a vida,
mas de repente a morte, é natural.
Tudo é tão natural, é como o céu
estrelado demais da minha terra
cobrindo o sonho opaco de um menino
— mordido de carapanã, caralho! --
que sequer sabe onde começa a fome.
As vozes do Salgueiro, na avenida,
porta-estandarte verde, me perguntam:
— E você sabe onde termina o céu?
E você sabe onde termina a terra?
E você sabe onde termina o mar?
Canto que não, naturalmente não.
Tenho muitos mistérios misturados,
curtidos em salmoura fedorenta.
Alguns serão matéria de mercado,
como o meu coração que, tantas vezes
exposto esteve em campos de amapolas,
mas nunca foi comprado, é natural.
Outros serão caterva de alçapões:
químico, turvo, o mundo me penetra
pelos poros mais podres, me rebelo,
não posso me entregar. Homem do Atlântico
pasto da luz latino-americana,
conheço a petroquímica ao reverso:
um fogo que se entrega à atmosfera,
fedento triste e inútil, enquanto hormônios,
enquanto pernas, enquanto fervores,
na solidão soturna das cidades,
na entressombra dourada das favelas,
se abraçam procurando a primavera
numa chama que nunca vai jamais
erguer a liberdade, é natural,
desse escuro porão, refúgio do homem,
mordido pelo sol do escorpião.
NA MANHÃ DO MILÊNIO
De que valeu o assombro indignado
e esta perseverança que me acende
em pleno dia a estrela que me guia,
seguro do meu chão e do meu sonho?
De que valeram todos os prodígios
da ciência mergulhando nas funduras
mais escuras da terra e dominar
jamais imaginadas vastidões
para encontrar a luz fossilizada?
Do que valeu meu passo peregrino
pelo tempo, meu grito solidário,
a entrega ardente, o castigo injusto,
o viver afastado do meu povo,
só porque desfraldei em plena praça
a bandeira do amor? Do que valeu
se hoje, manhã deste milênio novo,
avança, imensa e escura bem na fronte
a marca suja da miséria humana,
gravada em cinza pela indiferença
dos que pretendem donos ser da vida,
avança escura uma legião de crianças
deserdadas do amor e todavia
capazes de sorrir: maior milagre
do século perverso que findou?
De que valeram todas as palavras
que proferi na trova da esperança?
Tão pouco, talvez nada. Não consola
saber que fiz, que fiz a minha parte,
que reparti com tantos o diamante,
que olhei o sol de frente e não fugi
(nem do meu próprio medo).
De consolo não cuido. Pois valeu.
"Que tudo vale a pena quando a alma
não é pequena."
Não sei o tamanho
da minha alma. Só sei que vou varando
o fim do rio, já posso discernir
a margem que me chama. Mas obstinado
confiante sigo no poder distante
da estrela alucinante. Que destino
de estrela é o de brilhar.
E mesmo extinta
brilhante permanece sobre o mundo.
NARCISO CEGO
Tudo o que de mim se perde
acrescenta-se ao que sou.
Contudo, me desconheço.
Pelas minhas cercanias
passeio — não me frequento.
Por sobre fonte erma e esquiva
flutua-me, íntegra, a face.
Mas nunca me vejo: e sigo
com face mal disfarçada.
Oh que amargo é o não poder
rosto a rosto contemplar
aquilo que ignoto sou;
distinguir até que ponto
sou eu mesmo que me levo
ou se um nume irrevelável
que (para ser) vem morar
comigo, dentro de mim,
mas me abandona se rolo
pelos declives do mundo.
Desfaço-me do que sonho:
faço-me sonho de alguém
oculto. Talvez um Deus
sonhe comigo, cobice
o que eu guardo e nunca usei.
Cego assim, não me decifro.
E o imaginar-me sonhado
não me completa: a ganância
de ser-me inteiro prossegue.
E pairo — pânico mudo --
entre o sonho e o sonhador.
NÃO APRENDO A LIÇÃO
A lição de conviver,
senão de sobreviver
no mundo feroz dos homens,
me ensina que não convém
permitir que o tempo injusto
e a vida iníqua me impeçam
de dormir tranquilamente.
Pois sucede que não durmo.
Frente à verdade ferida
pelos guardiães da injustiça,
ao escárnio da opulência
e o poderio dourado
cujo esplendor se alimenta
da fome dos humilhados,
o melhor é acostumar-se,
o mundo foi sempre assim.
Contudo, não me acostumo.
A lição persiste sábia:
convém cabeça, cuidado,
que as engrenagens esmagam
o sonho que não se submete.
E que a razão prevaleça
vigilante e não conceda
espaços para a emoção.
Perante a vida ofendida
não vale a indignação.
Complexas são as causas
do desamparo do povo.
Mas não aprendo a lição.
Concedo que me comovo.
SONHO DOMADO
Sei que é preciso sonhar.
Campo sem orvalho, seca
A frente de quem não sonha.
Quem não sonha o azul do voo
perde seu poder de pássaro.
A realidade da relva
cresce em sonho no sereno
para não ser relva apenas,
mas a relva que se sonha.
Não vinga o sonho da folha
se não crescer incrustado
no sonho que se fez árvore.
Sonhar, mas sem deixar nunca
que o sol do sonho se arraste
pelas campinas do vento.
É sonhar, mas cavalgando
o sonho e inventando o chão
para o sonho florescer.
PARA OS QUE VIRÃO
Como sei pouco, e sou pouco,
faço o pouco que me cabe
me dando inteiro.
Sabendo que não vou ver
o homem que quero ser.
Já sofri o suficiente
para não enganar a ninguém:
principalmente aos que sofrem
na própria vida, a garra
da opressão, e nem sabem.
Não tenho o sol escondido
no meu bolso de palavras.
Sou simplesmente um homem
para quem já a primeira
e desolada pessoa
do singular – foi deixando,
devagar, sofridamente
de ser, para transformar-se
– muito mais sofridamente –
na primeira e profunda pessoa
do plural.
Não importa que doa: é tempo
de avançar de mão dada
com quem vai no mesmo rumo,
mesmo que longe ainda esteja
de aprender a conjugar
o verbo amar.
É tempo sobretudo
de deixar de ser apenas
a solitária vanguarda
de nós mesmos.
Se trata de ir ao encontro.
( Dura no peito, arde a límpida
verdade dos nossos erros. )
Se trata de abrir o rumo.
Os que virão, serão povo,
e saber serão, lutando.
FIO DA VIDA
Já fiz mais do que podia
Nem sei como foi que fiz.
Muita vez nem quis a vida
a vida foi quem me quis.
Para me ter como servo?
Para acender um tição
na frágua da indiferença?
Para abrir um coração
no fosso da inteligência?
Não sei, nunca vou saber.
Sei que de tanto me ter,
acabei amando a vida.
Vida que anda por um fio,
diz quem sabe. Pode andar,
contanto (vida é milagre)
que bem cumprido o meu fio.
Nascido em Barreirinha (interior do Estado do Amazonas), no dia 30 de março de 1926, Thiago de Mello conquistou reconhecimento nacional e internacional, tornando-se um dos mais expressivos poetas contemporâneos do país. É autor de livros reconhecidos mundialmente, como “Faz escuro, mas eu canto”, “Silêncio e palavra”, “Manaus, amor e memória”, entre outros. Além de escritor, exerceu o jornalismo e serviu no Itamaraty como adido cultural no Chile, onde cultivou uma grande amizade com Pablo Neruda e Salvador Allende.
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