Entrevista: Um chá com a poeta
Giselle Ribeiro
12 de março de 2022
por João Gomes
por João Gomes
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No chá de março conversei com a poeta e professora de Teoria Literária da UFPA Giselle Ribeiro. Com uma produção constante na poesia, por meio de sua personagem-alter-ego Dina, faz a gestação de sua trilogia iniciada pelo livro Escola para mulheres Safo. Giselle é livre, sem amarras, defende a escrita automática e na entrevista a seguir, feita para o podcast Vida Secreta, afirma: “gosto mesmo é de livro chegando onde precisam dele”, e sempre acompanhada de ilustrações autorais, como a da capa desta edição, é com poder poético que sua escrita chega.
Giselle, vivemos em uma sociedade misógina e patriarcal que impede e silencia constantemente as mulheres. Na contramão de tudo isso e sempre se reinventando, seus livros abordam sobretudo o erotismo e o lúdico como descoberta da própria inteligência. Como é ter leitores interessados por sua escrita libertária?
Que alegria poder conversar neste espaço aberto para a arte da palavra poética. Quanto a sua pergunta, João, eu digo que para a maioria dos leitores eu posso causar estranheza, pelo uso de uma linguagem poética desbocada e bem próxima de nossa função humana. Embora os leitores gostem do que tem diante de si, o que há é a própria negação da natureza humana. Porque a sociedade corrompe, arranha a nossa função erótica até que ela fique nos moldes que essa sociedade quer e determina. A mulher é a peça mais arranhada desse sistema que segue limando as nossas cordas vocais até que nenhum som de prazer ou revolta saia dali. E para lubrificar as cordas vocais de todas nós, eu escrevo poesia comprometida em afinar os nossos ruídos. Porque queremos ter ouvidos dispostos a nos escutar, e por isso eu escrevo.
Você demonstra muita facilidade para escrever poemas. Em entrevista ao projeto Como eu escrevo afirma que o processo tem sido como um espirro. A que se deve essa facilidade e de onde você busca inspirações para a escrita automática?
Eu disse que tenho alegria quando escrevo e que algumas vezes o poema já vem quase pronto, por isso a comparação com o espirro. Mas não é sempre assim. Há dias que a Dina, que é um não sei o que dentro de mim, me acorda às quatro ou cinco horas da manhã para me mandar um poema e eu anoto. Às vezes ele já vem pronto, outras vezes ela me dá ordens para arrumar melhor as palavras, e isso leva um dia, dois dias, às vezes até uma semana. Agora quanto a comparação com o espirro, ela vem da proposta do movimento Surrealista, um movimento literário encabeçado pelo francês André Breton. Os surrealistas acreditavam em inconsciente, na escrita desprendida da lógica, da razão. Nessa perspectiva, eles inventavam maneiras de escrever em liberdade. Assim, criavam jogos de escrita automática, como o jogo do cadáver esquisito por exemplo. Dessa forma eu venho construindo também alguns escritos meus e venho propagando também entre palestras, oficinas essa forma de escrita desviando da lógica, da razão e do enquadramento do que é a escrita poética.
Ser professora de Teoria Literária na Universidade Federal do Pará contribui na difusão ou em algo relacionado com o seu trabalho literário e o que motivou você a ser poeta e não, por exemplo, romancista?
Quando sou professora de Teoria Literária na UFPA, dificilmente divulgo a minha produção poética. Pelo menos era assim antes da pandemia, e naquela época eu não era tão engajada na luta de nós mulheres. Agora, vou precisar falar do que escrevo, porque acho que assumi contrato com as vozes de tantas mulheres para avançarmos nas conquistas, nos nossos direitos. Mas junto comigo vou chamar para a roda de conversa nomes de Líria Porto, Lázara Papandrea, Lourença Lou, Ana Farrah Baunilha, Adriane Garcia, e nomes de homens também: Lau Siqueira, Ney Ferraz Paiva, e outros que estão ao nosso lado. Quanto ao fato de ser poeta e não romancista, eu digo que mesmo fora da poesia eu falo pouco, observo mais e escrevo o gênero poesia porque esse gênero conversa melhor comigo. Não tenho muita intimidade com a prosa, sou mais da escuta e sigo acendendo os pontos obscuros da fala.
Você ilustra todos os seu livros. Conta um pouco como é realizada sua técnica de desenhos e como ela colabora com a percepção do seu fazer poético?
Essa pergunta é bastante interessante porque eu vou revelar uma frustração minha: eu não sei desenhar e fui ficando frustrada com isso durante um bom tempo. Até que eu descobri a colagem, e foi o ponto de fuga para essa frustração. Um dia eu comecei a brincar com o notebook, eu pegava coisas do Google e trazia para minha página em branco, e comecei a puxar fios até que me descobri fazendo desenhos tortos naquela página. Era assim: eu pegava um vestido, uma camiseta, uma saia, de lá do Google, da internet, e desenhava o corpo para aquela vestimenta. Brinquei tanto disso que gostei, e passei a fazer as minhas ilustrações usando recursos básicos no notebook. Não sei usar programas tecnológicos avançados, eu sei brincar de puxar fios e transformar imagens. Foi assim que comecei a ilustrar meus livros. Outro dia, conversando com o memorialista Stefanni Marion, ele me disse que pensava que eu era a dona da editora que atualmente faz as publicações dos meus livros. Porque ele achava que tudo fica do jeito bom que a escrita e imagem pedem. Eu disse a ele que no meu tempo de gestação, eu e o livro conversamos muito e nesse diálogo o livro vai me dizendo como ele quer vir ao mundo. Eu anoto tudo e passo para o editor, e quando não está do jeito que o livro quer ser gerado, eu reclamo e o editor refaz até ficar no ponto. No ponto do nascimento, no ponto do parto daquele livro vir ao mundo.
Você é curadora da Residência Campo de Heliantos, localizado em Alter do Chão, Pará. Como é realizada esta imersão literária na região amazônica?
Quanto à Residência Artística Travessias Poéticas, um projeto idealizado e desenvolvido pela escritora Graziela Brum, é um projeto interessantíssimo. Porque Graziela sai do seu lugar de conforto, morava em São Paulo, e se desloca para Alter do Chão, em Santarém, Amazônia. E vai criar novas perspectivas de estar em contato com essa Amazônia, e com os nativos da Amazônia, com essa natureza toda. Ela cria um projeto que é de extrema importância para os artistas de forma geral, que é esse projeto de residência artística. E ela chama pra fazer companhia a ela, nessa travessia, Stefanni Marion, que é um memorialista, ela chama Cássia Andrade, que é uma curadora, e me chamou, eu poeta. O que essa residência representa? Como e com o que ela está comprometida? Eu diria que Travessias Poéticas propõe o olhar outro para o cardápio da arte, você não vai ver um cardápio preenchido com o alimento de sempre. Não, tem novidades por aí. Porque Travessias Poéticas não assumiu nenhum acordo com fórmulas amarradas, no rigor de técnicas. Não, nós não queremos desenhar mapas e restringir as fronteiras da escrita poética, ou da fotografia, ou de qualquer outra expressão artística. Hoje, na entrevista de uma candidata, eu disse a ela que nós vamos apagar as talas, as grades das gaiolas. Porque dentro dessa residência não estamos inscrevendo só escritores e poetas. Ela se abre, por isso é um cardápio muito mais diferenciado que se tem por aí. Então, o que nós podemos dizer? Nós entendemos que esse projeto de travessias poéticas está comprometido com a libertação, o que queremos é ativar o estado primeiro da arte e dialogar com ele. Nesse sentido eu lembro de um poema do Manoel de Barros, que conversa muito bem com essa proposta de travessias poéticas, que é o poema que diz assim:
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos --
O verbo tem que pegar delírio.
Esse é um poema do Manoel de Barros, mas que comunica muito a proposta da Residência Artística Travessias Poéticas, porque assim vamos dialogar com várias expressões artísticas. Nós temos inscritos poetas, romancistas, fotógrafos, designers de jóias, estilista, então é um alargamento dessa convivência nesse espaço chamado Campo de Heliantos.
Começamos o ano com o falecimento do poeta amazonense Thiago de Mello e, não que tenha relação, foi publicado também o último volume da poesia completa do paraense Max Martins pela UFPA. Como vai a poesia atual produzida na região norte do Brasil e quem você indicaria para prestarmos mais atenção?
É, estamos colecionando tragédias com essa pandemia. E o que fazem os artistas diante do experimentado, do vivido? Eu tenho pensado escritores e poetas como cartórios de registros, é isso, nós somos isso: cartórios de registros. Pegamos essa realidade bruta e contamos do nosso modo nos nossos escritos. Muitos têm avançado nessa aventura da escrita poética, mas eu trago duas dicas de nomes fortes daqui do Norte do Brasil. Uma mulher e um homem, pra manter a balança em equilíbrio. O primeiro nome é Wanda Monteiro, que é poeta, e agora segue numa prosa forte atravessada pela ditadura, no livro Chão de exílio — o livro que vai ser lançado no dia 16 de março aqui em Belém do Pará. O outro nome é Ney Ferraz Paiva, um poeta que escreveu o livro O desastre toma conta de tudo, na verdade é outra escrita atravessada pela ditadura. Então são dois nomes fortes, que reforçam a ideia de que nós escritoras, escritores, poetas e poetos somos um cartório de registro. Registramos a existência humana e não humana do nosso modo.
Dina é talvez o nome que mais encontramos em seus poemas, estes que me fazem lembrar o livro Bufólicas, da Hilda Hilst. Como você encara o fato de seu trabalho ser obsceno, erótico ou pornográfico, ou nada disso lhe importa?
Esse é um assunto que as pessoas costumam falar em quatro paredes, não é? Escrever poesia erótica não me incomoda, incomoda os moralistas de plantão, aqueles que fazem escondido tudo o que minha poesia diz. Quando eu descobri a voz da Dina, personagem e dona daquela Escola para mulheres Safo, esse gênero se consolidou mais em mim e eu perdi o medo de falar, tanto nos livros quanto nos saraus, em entrevistas sobre esse assunto que pra mim é natural, que faz parte de todos nós. Se o que eu escrevo é obsceno, pornográfico ou erótico, eu posso dizer que minha poesia quer ser tudo issso, com naturalidade e na medida da escrita poética.
Mulheres que suspendem o recreio é o segundo livro da Escola da Dina. No posfácio, escrito por Lau Siqueira, ele acertadamente escreve que você “possui uma escrita polimétrica. Produz uma literatura cheia de criticidade. Aponta sobretudo para a literatura escrita por mulheres em todos os tempos. Mais que isso: mergulha profundo na sua condição de mulher.” Como é dar continuidade a esse projeto da Dina e o que você colheu com o primeiro livro, Escola para mulheres Safo?
No ano de 2017, quando eu acordava entre quatro e cinco horas da manhã com algum poema pedindo para saltar fora de mim, naquele tempo eu estava morando em Florianópolis, para terminar o doutoramento. E entre estudos e escrita da tese, a Dina se empurrava para o conhecimento do mundo, quase todos os dias ela me acordava e mandava os poemas através do inconsciente. Foi assim que o livro Escola para mulheres safo foi sendo gerado. Pensei que depois desse livro a Dina iria desaparecer do mundo, do mesmo modo que veio, mas não foi assim. Depois da publicação do livro, ela mandou o recado: ela queria uma trilogia e continuou mandando os poemas. O primeiro livro, ela diz, deve ser composto de lutas e amor, vividos pelas mulheres. O segundo livro, Mulheres que suspendem o recreio, nele só cabem as lutas. No terceiro livro, o amor dessas mulheres vai tomar forma mais vívida, por isso o nome "ABCdário das mulheres iniciadas na revolução amorosa". Foi o que anunciou a Dina, ela não desapareceu no instante da publicação do Escola para mulheres Safo, ela se mantém ali e me manda os poemas para o segundo livro, poemas já acabados, já em fase de publicação, e o terceiro livro, que é o livro final da trilogia e que está em fase de “fazeção”, eu posso assim dizer. Ela tem mandado os poemas ao longo da madrugada. Então é essa a experiência com a escrita de poesia erótica, pornográfica, ou obscena, como achardes melhor.
Seu “Livro ilustrado de poemas desbocados” venceu um prêmio literário na capital de origem (Belém/PA), mas o órgão que promoveu o concurso deixou cair no esquecimento e desrespeitou a publicação e o contrato assinado em 2017. Contra o descaso com a poesia, você lançou, acrescentando “Livro invisível” antes do título original. Como foi acompanhar todo esse processo de esquecimento e depois de disparo artístico e como é possível ser poeta no Brasil?
Pois é, João, eu sou uma poeta que não é muita dada a prêmios, mas fui empurrada para um que ocorre aqui no Pará, e venci na categoria poesia. Assinei contrato de publicação que de nada valeu. Nunca, nunca o órgão irresponsável cumpriu a sua parte, que era a publicação dos livros vencedores. Aí eu te digo: ser mulher é foda! Ser mulher poeta é foda duas vezes. O que a poesia ganha de um órgão como esse? Desrespeito. Então eu não tenho interesse em premiação, gosto mesmo é de livro chegando onde precisam dele. Foi por esse episódio fatídico que eu fiz a publicação independente do Livro invisível ou livro ilustrado de poemas desbocados, e com ele criei um selo de livro não premiado. Um selo que acompanha um manifesto de repúdio contra o desrespeito causado desnecessariamente pelo órgão incompetente.
Giselle, gostaria de lhe agradecer por tomar esse chá com a revista Vida Secreta e quero aproveitar pra dizer que já sou um pesquisador em sua produção literária. Gostaria de lhe convidar a ler o poema mais desbocado ou amoroso de seu novo livro, o "Mulheres que suspendem o recreio", e saber quais são as outras novidades que podemos aguardar, além do último da trilogia, o "ABCdário das mulheres iniciadas na revolução amorosa"?
Agora é a hora de agradecer a oportunidade de estar aqui nesse chá com a Revista Vida Secreta, o convite, e dizer da importância desse espaço para nós escritores, escritoras, poetas e poetos, porque é um espaço que nos permite dizer quem somos e o que fazemos sem deixar margens para a censura ou qual-quer outra forma de repressão. Quanto ao poema que você me pede, fui prestar atenção de que esse é o livro que eu menos es-tou desbocada e também estou menos amorosa, porque é um livro de luta. Mas eu achei um poema que pode caber no que você me pede, e o poema é "Devassa é teu cu":
um dia desses eu mato a mulher
que se exibe na tampa da long neck
e corre de mesa em mesa
de boca em boca
põe em evidência um corpo
que não nos representa
na long neck
de mesa em mesa
de boca em boca
essa mulher que eu não sou
se alonga faz pose
por uma grana pouca
eu não estou nela
nem no líquido barato dela
quando escorre no copo
de boca em boca
meu preço é outro
Agora você me pergunta da novidade, a próxima novidade: esse livro está acabado, já teve seu percurso de gestação, já vai provavelmente aparecer nesse mundo agora, acredito que no próximo mês ele já venha. E a novidade é a construção do terceiro livro da trilogia da Dina, que é um livro feito só de amor, de amor de mulheres. Então é um livro que tem sido a novidade para mim, porque o livro é ABCdário das mulheres inicia-das na revolução amorosa, e por ser ABCdário os poemas não têm título. O título dos poemas correspondem à primeira letra do poema, por exemplo, "B - Bucetenário":
ela disse e repetia como se mastigasse a palavra
deixando escapar seu gosto
bu ce te ná rio
parece que faz cem anos que nos conhecemos
só ontem trocamos telefone
marcamos encontro e conversamos
falamos tanto de nós do lado de dentro
depois abrimos as pernas
para ver se tudo encaixava bem
e falamos a mesma língua amorosa
por horas sem interrupção
amor assim desmedido
só acontece quando mulheres quebram o freio
e descem a ladeira
Giselle, vivemos em uma sociedade misógina e patriarcal que impede e silencia constantemente as mulheres. Na contramão de tudo isso e sempre se reinventando, seus livros abordam sobretudo o erotismo e o lúdico como descoberta da própria inteligência. Como é ter leitores interessados por sua escrita libertária?
Que alegria poder conversar neste espaço aberto para a arte da palavra poética. Quanto a sua pergunta, João, eu digo que para a maioria dos leitores eu posso causar estranheza, pelo uso de uma linguagem poética desbocada e bem próxima de nossa função humana. Embora os leitores gostem do que tem diante de si, o que há é a própria negação da natureza humana. Porque a sociedade corrompe, arranha a nossa função erótica até que ela fique nos moldes que essa sociedade quer e determina. A mulher é a peça mais arranhada desse sistema que segue limando as nossas cordas vocais até que nenhum som de prazer ou revolta saia dali. E para lubrificar as cordas vocais de todas nós, eu escrevo poesia comprometida em afinar os nossos ruídos. Porque queremos ter ouvidos dispostos a nos escutar, e por isso eu escrevo.
Você demonstra muita facilidade para escrever poemas. Em entrevista ao projeto Como eu escrevo afirma que o processo tem sido como um espirro. A que se deve essa facilidade e de onde você busca inspirações para a escrita automática?
Eu disse que tenho alegria quando escrevo e que algumas vezes o poema já vem quase pronto, por isso a comparação com o espirro. Mas não é sempre assim. Há dias que a Dina, que é um não sei o que dentro de mim, me acorda às quatro ou cinco horas da manhã para me mandar um poema e eu anoto. Às vezes ele já vem pronto, outras vezes ela me dá ordens para arrumar melhor as palavras, e isso leva um dia, dois dias, às vezes até uma semana. Agora quanto a comparação com o espirro, ela vem da proposta do movimento Surrealista, um movimento literário encabeçado pelo francês André Breton. Os surrealistas acreditavam em inconsciente, na escrita desprendida da lógica, da razão. Nessa perspectiva, eles inventavam maneiras de escrever em liberdade. Assim, criavam jogos de escrita automática, como o jogo do cadáver esquisito por exemplo. Dessa forma eu venho construindo também alguns escritos meus e venho propagando também entre palestras, oficinas essa forma de escrita desviando da lógica, da razão e do enquadramento do que é a escrita poética.
Ser professora de Teoria Literária na Universidade Federal do Pará contribui na difusão ou em algo relacionado com o seu trabalho literário e o que motivou você a ser poeta e não, por exemplo, romancista?
Quando sou professora de Teoria Literária na UFPA, dificilmente divulgo a minha produção poética. Pelo menos era assim antes da pandemia, e naquela época eu não era tão engajada na luta de nós mulheres. Agora, vou precisar falar do que escrevo, porque acho que assumi contrato com as vozes de tantas mulheres para avançarmos nas conquistas, nos nossos direitos. Mas junto comigo vou chamar para a roda de conversa nomes de Líria Porto, Lázara Papandrea, Lourença Lou, Ana Farrah Baunilha, Adriane Garcia, e nomes de homens também: Lau Siqueira, Ney Ferraz Paiva, e outros que estão ao nosso lado. Quanto ao fato de ser poeta e não romancista, eu digo que mesmo fora da poesia eu falo pouco, observo mais e escrevo o gênero poesia porque esse gênero conversa melhor comigo. Não tenho muita intimidade com a prosa, sou mais da escuta e sigo acendendo os pontos obscuros da fala.
Você ilustra todos os seu livros. Conta um pouco como é realizada sua técnica de desenhos e como ela colabora com a percepção do seu fazer poético?
Essa pergunta é bastante interessante porque eu vou revelar uma frustração minha: eu não sei desenhar e fui ficando frustrada com isso durante um bom tempo. Até que eu descobri a colagem, e foi o ponto de fuga para essa frustração. Um dia eu comecei a brincar com o notebook, eu pegava coisas do Google e trazia para minha página em branco, e comecei a puxar fios até que me descobri fazendo desenhos tortos naquela página. Era assim: eu pegava um vestido, uma camiseta, uma saia, de lá do Google, da internet, e desenhava o corpo para aquela vestimenta. Brinquei tanto disso que gostei, e passei a fazer as minhas ilustrações usando recursos básicos no notebook. Não sei usar programas tecnológicos avançados, eu sei brincar de puxar fios e transformar imagens. Foi assim que comecei a ilustrar meus livros. Outro dia, conversando com o memorialista Stefanni Marion, ele me disse que pensava que eu era a dona da editora que atualmente faz as publicações dos meus livros. Porque ele achava que tudo fica do jeito bom que a escrita e imagem pedem. Eu disse a ele que no meu tempo de gestação, eu e o livro conversamos muito e nesse diálogo o livro vai me dizendo como ele quer vir ao mundo. Eu anoto tudo e passo para o editor, e quando não está do jeito que o livro quer ser gerado, eu reclamo e o editor refaz até ficar no ponto. No ponto do nascimento, no ponto do parto daquele livro vir ao mundo.
Você é curadora da Residência Campo de Heliantos, localizado em Alter do Chão, Pará. Como é realizada esta imersão literária na região amazônica?
Quanto à Residência Artística Travessias Poéticas, um projeto idealizado e desenvolvido pela escritora Graziela Brum, é um projeto interessantíssimo. Porque Graziela sai do seu lugar de conforto, morava em São Paulo, e se desloca para Alter do Chão, em Santarém, Amazônia. E vai criar novas perspectivas de estar em contato com essa Amazônia, e com os nativos da Amazônia, com essa natureza toda. Ela cria um projeto que é de extrema importância para os artistas de forma geral, que é esse projeto de residência artística. E ela chama pra fazer companhia a ela, nessa travessia, Stefanni Marion, que é um memorialista, ela chama Cássia Andrade, que é uma curadora, e me chamou, eu poeta. O que essa residência representa? Como e com o que ela está comprometida? Eu diria que Travessias Poéticas propõe o olhar outro para o cardápio da arte, você não vai ver um cardápio preenchido com o alimento de sempre. Não, tem novidades por aí. Porque Travessias Poéticas não assumiu nenhum acordo com fórmulas amarradas, no rigor de técnicas. Não, nós não queremos desenhar mapas e restringir as fronteiras da escrita poética, ou da fotografia, ou de qualquer outra expressão artística. Hoje, na entrevista de uma candidata, eu disse a ela que nós vamos apagar as talas, as grades das gaiolas. Porque dentro dessa residência não estamos inscrevendo só escritores e poetas. Ela se abre, por isso é um cardápio muito mais diferenciado que se tem por aí. Então, o que nós podemos dizer? Nós entendemos que esse projeto de travessias poéticas está comprometido com a libertação, o que queremos é ativar o estado primeiro da arte e dialogar com ele. Nesse sentido eu lembro de um poema do Manoel de Barros, que conversa muito bem com essa proposta de travessias poéticas, que é o poema que diz assim:
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos --
O verbo tem que pegar delírio.
Esse é um poema do Manoel de Barros, mas que comunica muito a proposta da Residência Artística Travessias Poéticas, porque assim vamos dialogar com várias expressões artísticas. Nós temos inscritos poetas, romancistas, fotógrafos, designers de jóias, estilista, então é um alargamento dessa convivência nesse espaço chamado Campo de Heliantos.
Começamos o ano com o falecimento do poeta amazonense Thiago de Mello e, não que tenha relação, foi publicado também o último volume da poesia completa do paraense Max Martins pela UFPA. Como vai a poesia atual produzida na região norte do Brasil e quem você indicaria para prestarmos mais atenção?
É, estamos colecionando tragédias com essa pandemia. E o que fazem os artistas diante do experimentado, do vivido? Eu tenho pensado escritores e poetas como cartórios de registros, é isso, nós somos isso: cartórios de registros. Pegamos essa realidade bruta e contamos do nosso modo nos nossos escritos. Muitos têm avançado nessa aventura da escrita poética, mas eu trago duas dicas de nomes fortes daqui do Norte do Brasil. Uma mulher e um homem, pra manter a balança em equilíbrio. O primeiro nome é Wanda Monteiro, que é poeta, e agora segue numa prosa forte atravessada pela ditadura, no livro Chão de exílio — o livro que vai ser lançado no dia 16 de março aqui em Belém do Pará. O outro nome é Ney Ferraz Paiva, um poeta que escreveu o livro O desastre toma conta de tudo, na verdade é outra escrita atravessada pela ditadura. Então são dois nomes fortes, que reforçam a ideia de que nós escritoras, escritores, poetas e poetos somos um cartório de registro. Registramos a existência humana e não humana do nosso modo.
Dina é talvez o nome que mais encontramos em seus poemas, estes que me fazem lembrar o livro Bufólicas, da Hilda Hilst. Como você encara o fato de seu trabalho ser obsceno, erótico ou pornográfico, ou nada disso lhe importa?
Esse é um assunto que as pessoas costumam falar em quatro paredes, não é? Escrever poesia erótica não me incomoda, incomoda os moralistas de plantão, aqueles que fazem escondido tudo o que minha poesia diz. Quando eu descobri a voz da Dina, personagem e dona daquela Escola para mulheres Safo, esse gênero se consolidou mais em mim e eu perdi o medo de falar, tanto nos livros quanto nos saraus, em entrevistas sobre esse assunto que pra mim é natural, que faz parte de todos nós. Se o que eu escrevo é obsceno, pornográfico ou erótico, eu posso dizer que minha poesia quer ser tudo issso, com naturalidade e na medida da escrita poética.
Mulheres que suspendem o recreio é o segundo livro da Escola da Dina. No posfácio, escrito por Lau Siqueira, ele acertadamente escreve que você “possui uma escrita polimétrica. Produz uma literatura cheia de criticidade. Aponta sobretudo para a literatura escrita por mulheres em todos os tempos. Mais que isso: mergulha profundo na sua condição de mulher.” Como é dar continuidade a esse projeto da Dina e o que você colheu com o primeiro livro, Escola para mulheres Safo?
No ano de 2017, quando eu acordava entre quatro e cinco horas da manhã com algum poema pedindo para saltar fora de mim, naquele tempo eu estava morando em Florianópolis, para terminar o doutoramento. E entre estudos e escrita da tese, a Dina se empurrava para o conhecimento do mundo, quase todos os dias ela me acordava e mandava os poemas através do inconsciente. Foi assim que o livro Escola para mulheres safo foi sendo gerado. Pensei que depois desse livro a Dina iria desaparecer do mundo, do mesmo modo que veio, mas não foi assim. Depois da publicação do livro, ela mandou o recado: ela queria uma trilogia e continuou mandando os poemas. O primeiro livro, ela diz, deve ser composto de lutas e amor, vividos pelas mulheres. O segundo livro, Mulheres que suspendem o recreio, nele só cabem as lutas. No terceiro livro, o amor dessas mulheres vai tomar forma mais vívida, por isso o nome "ABCdário das mulheres iniciadas na revolução amorosa". Foi o que anunciou a Dina, ela não desapareceu no instante da publicação do Escola para mulheres Safo, ela se mantém ali e me manda os poemas para o segundo livro, poemas já acabados, já em fase de publicação, e o terceiro livro, que é o livro final da trilogia e que está em fase de “fazeção”, eu posso assim dizer. Ela tem mandado os poemas ao longo da madrugada. Então é essa a experiência com a escrita de poesia erótica, pornográfica, ou obscena, como achardes melhor.
Seu “Livro ilustrado de poemas desbocados” venceu um prêmio literário na capital de origem (Belém/PA), mas o órgão que promoveu o concurso deixou cair no esquecimento e desrespeitou a publicação e o contrato assinado em 2017. Contra o descaso com a poesia, você lançou, acrescentando “Livro invisível” antes do título original. Como foi acompanhar todo esse processo de esquecimento e depois de disparo artístico e como é possível ser poeta no Brasil?
Pois é, João, eu sou uma poeta que não é muita dada a prêmios, mas fui empurrada para um que ocorre aqui no Pará, e venci na categoria poesia. Assinei contrato de publicação que de nada valeu. Nunca, nunca o órgão irresponsável cumpriu a sua parte, que era a publicação dos livros vencedores. Aí eu te digo: ser mulher é foda! Ser mulher poeta é foda duas vezes. O que a poesia ganha de um órgão como esse? Desrespeito. Então eu não tenho interesse em premiação, gosto mesmo é de livro chegando onde precisam dele. Foi por esse episódio fatídico que eu fiz a publicação independente do Livro invisível ou livro ilustrado de poemas desbocados, e com ele criei um selo de livro não premiado. Um selo que acompanha um manifesto de repúdio contra o desrespeito causado desnecessariamente pelo órgão incompetente.
Giselle, gostaria de lhe agradecer por tomar esse chá com a revista Vida Secreta e quero aproveitar pra dizer que já sou um pesquisador em sua produção literária. Gostaria de lhe convidar a ler o poema mais desbocado ou amoroso de seu novo livro, o "Mulheres que suspendem o recreio", e saber quais são as outras novidades que podemos aguardar, além do último da trilogia, o "ABCdário das mulheres iniciadas na revolução amorosa"?
Agora é a hora de agradecer a oportunidade de estar aqui nesse chá com a Revista Vida Secreta, o convite, e dizer da importância desse espaço para nós escritores, escritoras, poetas e poetos, porque é um espaço que nos permite dizer quem somos e o que fazemos sem deixar margens para a censura ou qual-quer outra forma de repressão. Quanto ao poema que você me pede, fui prestar atenção de que esse é o livro que eu menos es-tou desbocada e também estou menos amorosa, porque é um livro de luta. Mas eu achei um poema que pode caber no que você me pede, e o poema é "Devassa é teu cu":
um dia desses eu mato a mulher
que se exibe na tampa da long neck
e corre de mesa em mesa
de boca em boca
põe em evidência um corpo
que não nos representa
na long neck
de mesa em mesa
de boca em boca
essa mulher que eu não sou
se alonga faz pose
por uma grana pouca
eu não estou nela
nem no líquido barato dela
quando escorre no copo
de boca em boca
meu preço é outro
Agora você me pergunta da novidade, a próxima novidade: esse livro está acabado, já teve seu percurso de gestação, já vai provavelmente aparecer nesse mundo agora, acredito que no próximo mês ele já venha. E a novidade é a construção do terceiro livro da trilogia da Dina, que é um livro feito só de amor, de amor de mulheres. Então é um livro que tem sido a novidade para mim, porque o livro é ABCdário das mulheres inicia-das na revolução amorosa, e por ser ABCdário os poemas não têm título. O título dos poemas correspondem à primeira letra do poema, por exemplo, "B - Bucetenário":
ela disse e repetia como se mastigasse a palavra
deixando escapar seu gosto
bu ce te ná rio
parece que faz cem anos que nos conhecemos
só ontem trocamos telefone
marcamos encontro e conversamos
falamos tanto de nós do lado de dentro
depois abrimos as pernas
para ver se tudo encaixava bem
e falamos a mesma língua amorosa
por horas sem interrupção
amor assim desmedido
só acontece quando mulheres quebram o freio
e descem a ladeira
Giselle Ribeiro nasceu na Amazônia brasileira, no Norte do Brasil, Belém-PA. Lá vive até hoje. Tem publicações de poesia erótica e outros gêneros próprios da escrita poética.
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